Título: Eutanásia. A discussão está posta
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Vida, p. A15
Dois filmes atualmente em cartaz abordam o tema difícil e polêmico - mas fundamental para muitas famílias e seus médicos.
Qual é a primeira imagem que vem à cabeça das pessoas quando o assunto é eutanásia? Para a maioria, é de alguém desligando um aparelho conectado ao paciente em estado terminal. É esse tipo de história mesmo que mais chama a atenção por sua contundência. A cena existe, sem dúvida. Mas há outra forma de eutanásia pouco lembrada e talvez bem mais próxima da nossa realidade - e até mesmo praticada nos hospitais brasileiros. É a ortotanásia ou eutanásia passiva, quando o próprio doente em fase final da vida decide a hora da morte. Em resumo, é quando ele pede que o tratamento destinado a mantê-lo vivo seja suspenso.
O assunto rende discussão e não é nada objetivo. Afinal, quando o desejo do paciente deve ser de fato levado em consideração pelos médicos? Quando é exatamente a hora do fim da vida se há recursos na medicina capazes de manter uma pessoa viva por décadas? "É perfeitamente possível haver acordo tácito no meio médico com determinados prontuários", afirma o médico Marco Segre, da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas e professor emérito de bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). "Dependendo do caso, quando há evidência de que o paciente vai morrer e o médico lhe dá morfina (substância usada como sedativo), sabe-se bem que ela pode deprimir o centro respiratório e matar. Não digo que isso ocorra na prática no Brasil. Mas que pode acontecer e é compreensível."
O Código de Ética Médica veda ao médico a utilização de meios destinados a abreviar a vida do paciente ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal. No projeto de reforma do Código Penal do País, porém, está prevista - e muito bem definida - a ortotanásia. "O paciente poderá manifestar o desejo de morrer, mas terá de ter a concordância de seus familiares, do médico que o acompanha e também de outro médico", explica o advogado Renato de Paula Magri, diretor da Escola Superior de Advocacia de São José do Rio Preto e autor de uma dissertação de mestrado sobre aspectos jurídicos da eutanásia.
COVAS
Um caso conhecido no Brasil que poderia ser considerado ortotanásia é o do governador de São Paulo Mário Covas, morto em 2001 por um câncer na bexiga. "Covas me disse que não queria sofrer com tratamentos heróicos não objetivos e que eu seguisse até onde fosse mantida a dignidade", lembra o infectologista David Uip, médico pessoal do govenador.
Já com falência dos órgãos vitais, Covas foi mantido nos últimos dias de vida em um dos quartos do Instituto do Coração (Incor), e não na UTI. Uma semana antes de morrer, chegou a ter o consentimento de Uip para passar o carnaval na praia. "Fui muito criticado na época por isso", conta o médico. Já com Covas internado no Incor, Uip ficou literalmente ao lado de seu paciente, dormindo no hospital nos últimos dias para acompanhá-lo de perto. "Não adiantei, mas também não atrasei a morte dele."
A decisão do governador foi perfeitamente legal. Teve como base a Lei n.º 10.241, assinada por ele mesmo em março de 1999. Ela diz: é direito do usuário do serviço de saúde no Estado de São Paulo recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; e optar pelo local de morte. "A lei estadual trata de maneira elegante a eutanásia", acredita o advogado Magri.
A autonomia do paciente é defendida por Marco Segre, da USP. "Se fosse permitido legalmente, qual seria o problema de acabar com o sofrimento de um paciente se não tivesse nenhuma expectativa de recuperação?", questiona. "Já estamos na época da morte fútil ou distanásia, que é o prolongamento exagerado de tratamentos que fazem hospitais ganhar dinheiro com internações inúteis em UTIs."
De acordo com o padre Leo Pessini, autor do livro Eutanásia (Edições Loyola, 2004) e integrante da Associação Internacional de Bioética, no entanto, uma das maiores razões de existir a distanásia é a própria proibição da eutanásia.
Hoje, a eutanásia é caracterizada como crime. "Mas ela já foi enquadrada como suicídio pelo juiz", conta Magri. "A vantagem disso é que o réu, além de não ter de passar pelo júri, tem pena menor."
Em novembro, o papa João Paulo II reforçou a condenação à eutanásia. "Isso não significa que não se tenha nada a fazer diante do sofrimento e dores atrozes de quem caminha para a morte", diz o padre Júlio Munaro, coordenador da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de São Paulo. "A Igreja considera legítimo e até obrigatório o uso de drogas para aliviar a dor, mesmo que isso venha, como efeito secundário, a encurtar a vida do paciente."
Dois filmes atualmente em cartaz, Mar Adentro e Menina de Ouro, exibem histórias de eutanásia. No primeiro, a convicção do tetraplégico Ramón Sampedro - interpretado por Javier Bardem - de querer morrer é tamanha que em um dos únicos momentos que exibe uma dúvida é quando pergunta repetidamente para si mesmo o porquê de ter tanta certeza de querer morrer.
BOA MORTE
A eutanásia, que em grego quer dizer boa morte, nem sempre teve conotação pesada. "Ela ganhou aspecto negativo depois da 2.ª Guerra Mundial, quando Hitler fez barbaridades nesse sentido", explica o padre Pessini. "Até então, tratava-se da presença amiga do médico ao lado do doente terminal para amenizar a sua dor e fazer com que a morte fosse o menos traumática possível."
O filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) foi um dos primeiros a afirmar que um dos deveres do médico era prolongar a vida do paciente. Antes disso quase não se falava de intervenção humana. Era a vontade divina, a boa ou a má sorte que determinavam a chegada da morte.