Título: Transporte público, o desastre
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/03/2005, Economia, p. B2

Quanto custa para São Paulo e para o Brasil a qualidade ultrajante do transporte público na capital paulista? O custo econômico, nesse caso, é inseparável do sofrimento imposto no dia-a-dia aos milhões de passageiros de ônibus e peruas, que recebem um serviço de Quarto Mundo. Trajetos inadequados, veículos superlotados em alguns horários e quase vazios em outros, mas sempre custando muito dinheiro ao cidadão, são com certeza um importante fator do custo Brasil. Essa parcela de custo nunca foi estimada de forma completa, mas é inadmissível, com certeza, numa economia aberta, exposta à competição internacional e pressionada para ganhar eficiência continuamente. O candidato José Serra, hoje prefeito, baseou grande parte de sua campanha na promessa de um melhor serviço de saúde. Ao insistir nesse tema, golpeou um dos pontos mais vulneráveis da administração da prefeita Marta Suplicy. Seu discurso eleitoral subestimou, no entanto, um problema pelo menos tão grave quanto o da assistência à saúde.

Numa grande cidade, transporte é um dos elementos fundamentais de ordenação do espaço público e da vida coletiva. É uma condição tanto de bem-estar quanto de eficiência econômica para o sistema produtivo e para os indivíduos. Esse fator é ainda mais importante num aglomerado enorme como São Paulo, caracterizado por uma desordenada expansão horizontal.

Discutiu-se na campanha o futuro do Bilhete Único: seria mantido pelo prefeito Serra? Seu tempo de validade seria encurtado? Seu custo para o usuário tenderia a aumentar? O assunto manteve-se em destaque no início da nova gestão. Mas esse tema só é relevante porque muitas pessoas têm de usar mais de uma condução para a atividade diária.

No caso de São Paulo, o uso de múltiplas conduções não resulta só da complexidade da malha de transportes. É conseqüência principalmente das longas distâncias percorridas pelos passageiros. Em muitos casos, o uso de vários ônibus, ou de ônibus e metrô, é indispensável apenas porque a malha é mal desenhada. Os trajetos atendem mais ao interesse dos empresários do setor do que às conveniências de quem depende dos ônibus e das peruas.

Mas transporte público não é um negócio como outro qualquer e essa restrição vale especialmente para o serviço urbano. Em São Paulo, a privatização dos serviços de ônibus foi certamente além do ponto projetado. Com a extinção da velha Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), entregou-se ao setor privado muito mais que o direito de realizar o trabalho e de ganhar dinheiro com isso, mediante concessão.

O desmedido poder dos empresários do setor é indisfarçável. Não há entre eles uma efetiva concorrência. A Prefeitura tentou mudar as condições do jogo e para isso procurou atrair para o setor novos participantes. Fracassou.

Privatizado o serviço, em pouco tempo a atividade passou a ser controlada pelos interesses de alguns grupos. Foi por isso que os perueiros puderam conquistar, mesmo sem atuação regular nos primeiros tempos, importante participação no mercado.

Eles tiveram sucesso, inicialmente, porque ofereceram serviços que as empresas de ônibus não ofereciam. Até por isso a atuação dos perueiros foi vista com certa simpatia pela imprensa nos primeiros tempos. Era como se o mercado, de alguma forma, corrigisse as falhas do serviço privatizado.

Mas também o poder dos perueiros, ou de alguns grupos mais audaciosos, cresceu de forma descontrolada. Também eles acabaram impondo seus interesses à Prefeitura e à população, que mais uma vez ficou em segundo plano.

É hora de se fazer uma revisão da política de transporte urbano em São Paulo. A discussão sobre detalhes de contratos e sobre subsídios devidos ou indevidos pela Prefeitura só tem sentido como problema de curtíssimo prazo. A questão de grande alcance é outra: é preciso reintegrar o transporte no conjunto da política urbana. A cidade não pode conviver por muito mais tempo com serviços de transporte orientados principalmente, se não exclusivamente, pelo interesse privado. Transporte público ruim produz perdas diretas e indiretas. Sua ineficiência é um estímulo poderoso ao uso do automóvel. É um fator a mais de congestionamento de trânsito e de paralisação da cidade. É um fator de custo que afeta de múltiplas formas tanto os indivíduos quanto as empresas. Se nenhum outro dano econômico entrasse na conta, bastaria computar a perda de produtividade ocasionada pelo massacre diário de milhões de trabalhadores e de estudantes. Feitas as contas, que é que se ganha, coletivamente, com o pagamento de subsídios aos empresários, e não, diretamente, aos usuários do transporte? Em suma: qual foi o ganho social e econômico dessa privatização?