Título: O sigilo que pode dar cadeia - entrevista
Autor: Judith Miller
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Internacional, p. A20

Judith Miller está ameaçada de prisão por não revelar suas fontes no caso de vazamento da identidade de uma espiã da CIA.

WASHINGTON - Em quase três décadas como repórter do New York Times e autora de best-sellers sobre terrorismo e Oriente Médio, a jornalista Judith Miller, de 57 anos, ganhou prêmios, colecionou críticos mordazes e demonstrou incomparável talento para manter-se em evidência. Hoje, ela é personagem central de um enredo que não escreveu, mas que poderá levá-la à cadeia e adicionar uma dimensão heróica - a de mártir na defesa da liberdade de imprensa - à sua controvertida reputação. "Isso a reabilitou um pouco" entre seus colegas, disse na semana passada Lucy Dalglish, a diretora do Comitê de Repórteres para a Liberdade de Imprensa.

Ela se referia a uma decisão que uma comissão de três juízes do Tribunal Federal de Apelações de Washington anunciou na terça-feira, rejeitando recurso apresentado por Miller e Matthew Cooper, vice-chefe da sucursal da revista Time em Washington, contra ordem de prisão por até 18 meses que receberam de um juiz federal, em outubro, por ignorar intimação para revelar suas fontes a um grande júri que investiga o vazamento à imprensa da identidade de uma agente da CIA, Valerie Plame, por altos funcionários da Casa Branca.

Os juízes determinaram que a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão, não protege os acordos de confidencialidade entre jornalistas e suas fontes, em investigações criminais. Os advogados de Miller e Cooper entraram com novo recurso e o caso deve chegar à Suprema Corte.

O vazamento de nomes de agentes dos serviços de inteligência americanos é, potencialmente, crime federal nos EUA, embora haja controvérsia também a esse respeito. O caso que pode levar Miller e Cooper à cadeia começou em julho de 2003 com a publicação do nome da espiã pelo colunista ultraconservador Robert Novak, no Washington Post e dezenas de outros jornais. O vazamento foi uma clara vendeta política contra o marido de Plame, o ex-embaixador Joseph Wilson, um democrata que um mês antes causara enorme embaraço à administração. Num artigo publicado no New York Times, em junho, Wilson revelara que havia realizado uma missão especial para a CIA no Níger e constatado serem falsas as afirmações feitas pelo presidente George W. Bush num discurso ao Congresso, no início daquele ano, sobre a compra de minério de urânio no país africano pelo ditador Saddam Hussein.

Em vez de ir direto às fontes do vazamento, ou pressionar Novak a revelar quem lhe disse que Plame trabalhava na CIA, o promotor especial nomeado para investigar o caso investiu contra os jornalistas que apuraram o caso. Alguns foram liberados do compromisso de confidencialidade por suas fontes e compareceram perante o grande júri - um grupo de 21 cidadãos que determina se houve ou não crime. O próprio Cooper chegou a depor uma vez.

O fato de Miller ter se tornado alvo das investigações é especialmente intrigante, por várias razões. Embora tenha feito algumas entrevistas, ela nada escreveu a respeito. Além disso, Miller é vista como uma jornalista politicamente próxima dos neoconservadores que mandam na administração americana. As matérias que produziu sobre o programa de armas químicas do Iraque, antes da invasão do país, e um livro que publicou sobre o tema ajudaram Bush a vender a noção de que Saddam possuía armas de destruição em massa e representava um perigo iminente à segurança dos EUA.

Não foi a primeira vez que a jornalista ajudou a acirrar os ânimos em relação ao Oriente Médio. No livro Covering Islam (Cobrindo o Islã), o intelectual americano-palestino Edward W. Said, já falecido, descreveu um dos best seller de Miller - God Has Ninety Nine Names (Deus tem Noventa e Nove Nomes), de 1996, sobre a militância radical no Oriente Médio - como "um manual das impropriedades e distorções da cobertura do Islã" nos meios de comunicação nos EUA.

Miller é figura polêmica dentro da própria redação do New York Times. Em maio, Howard Kurtz, que cobre imprensa para o Washington Post, revelou uma troca de mensagens de e-mail entre ela e o chefe do escritório do Times em Bagdá, John Burns, nas quais este a admoestou por ter entrevistado e publicado matéria com político iraquiano Ahmed Chalabi sem seu conhecimento. Chalabi, hoje em desgraça em Washington, era então próximo dos neoconservadores da administração e grande fornecedor das informações falsas sobre o arsenal de armas de Saddam.

Este mês, o ombudsman do próprio New York Times, Daniel Okrent, criticou Miller por afirmações que ela fez no programa Hardball, da MSNBC. Citando fontes anônimas, Miller disse que a administração Bush estava se reaproximando de Chalabi - uma informação que ainda não havia publicado no Times.

Christopher Simpson, professor da Escola de Comunicação da American University, em Washington, e estudioso das leis que regem a imprensa nos EUA, vê na ameaça de prisão de Miller e Cooper "uma estratégia do governo para intimidar os meios de comunicação", que, segundo ele, aumentou com a ascensão das forças conservadoras na política americana.

"Há, contudo, uma deliciosa ironia nesse caso", observou ele ao Estado. "Judith Miller causou mais intimidação e mágoa entre jornalistas profissionais do que qualquer outro repórter e fez uma carreira de sua associação com a ala neoconservadora do Partido Republicano." Segundo o professor, "nos últimos 20 anos, Miller promoveu em suas matérias uma linha de alarme extremo sobre o que ela define como terrorismo e que vai muito além da realidade".

Esta é uma das raras entrevistas exclusivas que a jornalista deu sobre o caso.

Como você descreveria sua situação se tivesse que escrever a respeito.

Não quero descrevê-la... É uma situação absurda, na qual estou sendo acusada de desacato à Justiça por me recusar a prestar depoimento sobre algo que pode nem ter sido um crime e a respeito do que nunca escrevi. É uma coisa meio orwelliana.

O que está em discussão?

A questão subjacente é se jornalistas devem ou não ser considerados como advogados, membros do clero, esposos, médicos e terapeutas, que estão legalmente dispensados de comparecer perante grandes júris para depor sobre fatos de que tomaram conhecimento no exercício de suas atividades profissionais ou na privacidade do lar. Em 1972, a Suprema Corte decidiu que esse privilégio não se estende aos jornalistas. Mas desde então 49 Estados e o Distrito de Columbia, por meio de leis e decisões judiciais concluíram que essa proteção aos jornalistas existe ou deveria existir. A ironia é que se o caso estivesse num tribunal estadual em Nova York, onde eu trabalho, na corte municipal do Distrito de Colúmbia, onde eu trabalho, e não na Justiça federal, eu não teria de comparecer ao grande júri.

Mas os juízes rejeitaram o argumento apresentado por seu advogado, segundo qual a Primeira Emenda da Constituição protege os jornalistas contra intimações para depor em investigações criminais federais....

Nossa posição é que muita coisa aconteceu desde que a Suprema Corte tomou tal decisão em 1972 e esperamos que os juízes, quando começarem a pensar a respeito, compreenderão que as situações evoluem, as leis mudam, a lei comum mudou e as atitudes quanto à natureza vital, essencial da imprensa também mudaram. Tivemos, desde então, Watergate, guerras e crises, e em todos os casos a imprensa desempenhou papel central.

Você está pronta para ir para a cadeia se a Justiça rejeitar seus argumentos de forma definitiva?

Estou. Tenho de estar, para proteger a confidencialidade das fontes, que é vital para nossa profissão. Somos apenas tão bons como jornalistas quanto forem as nossas fontes. Se as pessoas não confiarem em que as protegemos quando elas nos dão informações que podem ser ilegais ou impróprias, ou revelar atividades ilegais ou impróprias, elas deixarão de nos procurar. E o governo está tornando cada vez mais difícil para as pessoas falar sobre atos ilegais ou impróprios.

Isso é mais acentuado na atual administração ou vem de antes?

Nos EUA, isso tem acontecido com governos republicanos e democratas, mas aumentou, especialmente, desde o 11 de Setembro. A tendência ao sigilo não é republicana ou democrata.

Em seus artigos no 'New York Times' você sempre procurou assinalar que um dos problemas do Oriente Médio é a falta de democracia. Como se sente, como jornalista e cidadã do país que consagrou a liberdade de imprensa e diz exportar liberdade, agora que é alvo de uma ordem de prisão por exercer o jornalismo.

É por isso que sou otimista que, no final, o tribunal chegará à conclusão apropriada. Eu acredito em nossa democracia. Acredito que temos mais liberdade aqui do que em qualquer outra parte do mundo, para dizer o que pensamos e praticar nosso ofício. Eu sei qual é a diferença, por experiência própria, entre a cobertura jornalística aqui e em outros países. Seria, de fato, uma triste mensagem se os EUA, ao mesmo tempo em que dizem estar promovendo a democracia ao redor do mundo, começassem a reprimir a imprensa em casa, que é um dos garantes da nossa democracia.

Você foi criticada por outros jornalistas no passado e mais recentemente por ter escrito matérias que ajudaram a montar o argumento sobre a existência de armas químicas no Iraque e justificar a invasão do país. Isso tem afetado o nível de solidariedade que você está recebendo, agora, de seus colegas?

Nós todos cometemos erros, baseados em nossas fontes. A informação (sobre armas químicas no Iraque) estava errada. Hoje sabemos isso. Quando (o então diretor da CIA) disse que a existência de armas de destruição em massa no Iraque era evidente, ele não estava falando isso somente para mim, ele estava falando para o presidente dos EUA. A polarização provocada pela guerra fez com as pessoas buscassem bodes expiratórios, e eu era um bode expiatório natural.