Título: Bush chega hoje à Europa para fazer as pazes
Autor: Gerard Baker
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Internacional, p. A21

Mas os europeus não devem esperar nenhuma mudança nas principais linhas da política externa americana.

LONDRES - Ouçam atentamente. Aquele barulho estranho que vem de Washington é o som do governo Bush tentando fazer uma serenata para os europeus. Depois de quatro anos em que as relações transatlânticas foram regidas segundo uma partitura wagneriana, com motivos condutores do unilateralismo americano sublinhando uma saga de tempestade e ímpeto, as melodias vêm soando mais como Mozart desde a posse de Bush para o segundo mandato, no mês passado.

Condoleezza Rice tocou uma pequena serenata noturna com a diplomacia em Paris e Berlim neste mês. O homem que disse coisas agradáveis aos europeus no fim de semana passado, numa conferência sobre segurança em Munique, soou por vezes mais Don Giovanni que Don Rumsfeld.

Neste domingo, as aberturas darão lugar ao movimento principal quando Bush aterrissar em Bruxelas, no início de uma visita de quatro dias na qual a restauração da harmonia transatlântica será o tema. Depois da reeleição do presidente, funcionários dos EUA concluíram que nada vão lucrar irritando gratuitamente os europeus.

Isso não significa nenhuma disposição de fazer concessões sobre o impulso básico da política dos EUA. Continuam existindo profundas divergências sobre o Irã, o armamento da China e os objetivos americanos mais amplos de levar a liberdade ao ignorante Oriente Médio. Mas Washington transborda de boa vontade, especialmente depois das bem-sucedidas eleições iraquianas, e o foco desta semana deverá se concentrar em áreas onde uma convergência antes considerada improvável agora pode ser alcançada. Sobre a mudança climática, Bush apresentará idéias de investimento tecnológico para combater o aquecimento global; sobre Israel e a Palestina, ele prometerá manter o compromisso com Mahmud Abbas, o novo líder palestino.

Trata-se de raras boas notícias diplomáticas para Tony Blair. O primeiro-ministro britânico, afinal, construiu sua política externa sobre a proposição, ainda não comprovada, de que os EUA e os europeus podem trabalhar juntos por um mundo melhor e a Grã-Bretanha pode desempenhar um papel único para facilitar essa parceria.

Mas Blair está especialmente feliz por ver os EUA e a Europa fazendo as pazes porque, depois da insistência de Londres, e a despeito de sua resistência, Washington parece começar a gostar da integração européia.

O apoio à unidade européia em teoria é há tempos um artigo de fé da política externa dos EUA. Mas os eventos dos últimos quatro anos fizeram alguns membros do governo Bush perceber que uma Europa de Estados-nações é potencialmente muito mais útil para os EUA do que uma Europa unida sob a liderança franco-germânica. Mas em sua viagem pela Europa neste mês, Rice indicou que aquela visão pode estar mudando. Ela disse a um grupo de comentaristas acreditar que a nova Constituição européia, criando um único ministro do Exterior para articular uma única política externa, é uma boa idéia.

Isto foi, aparentemente, uma intervenção extraordinariamente abrupta nos debates domésticos dos países europeus. Afirma-se em Washington que os britânicos acham que seria bastante útil se os EUA embarcassem na idéia da Constituição da União Européia para aumentar as chances de sucesso no referendo que o país realizará em 2006. A Grã-Bretanha argumenta que uma Europa unificada não representaria ameaça aos EUA e os ajudaria a atingir seus objetivos de política externa.

Mas parece que, mais uma vez, uma combinação de ingenuidade dos britânicos e confiança equivocada em sua capacidade de controlar os assuntos europeus contaminou o discernimento do governo. Os verdadeiros líderes da UE, em Paris, Berlim e Bruxelas, são bem claros quanto à direção que pretendem dar a esta Europa recém-unida, e não é a direção de Londres, muito menos de Washington.

Cresce na Europa a confiança de que os EUA podem ser persuadidos, depois da aprovação da Constituição, a mudar os termos do debate transatlântico; a reconhecer a UE como o principal interlocutor das relações EUA-Europa; e a abandonar a noção ultrapassada de Estados-nações fazendo a própria política externa.

Um elemento fundamental dessa estratégia é encorajar os EUA a abandonarem a Otan como o principal fórum de discussão das relações transatlânticas. Como um órgão genuinamente multilateral, a Otan é um obstáculo inconveniente às ambições de política externa do super-Estado da UE. É hora de abandoná-la. Na conferência de Munique, Gerhard Schroeder, o chanceler alemão, deixou escapar a verdadeira agenda. A Otan, disse ele, não é mais o lugar para a consideração das relações transatlânticas. Ele pediu uma revisão, deixando implícita a clara sugestão de que a UE deveria assumir o papel principal na representação da política européia.

Se a Grã-Bretanha e as outras nações votarem para aprovar a Constituição da UE, o futuro estará aberto a uma mudança dramática no modo como a política externa européia é conduzida. Com a conivência americana com suas ambições federalistas, a UE reclamará o papel principal como planejadora da política externa da Europa.

Felizmente há algumas pessoas nos EUA e na Europa mais capazes que o governo britânico de enxergar os perigos dessa abordagem. No fim de semana passada, Rumsfeld se recusou intencionalmente a endossar a Constituição da UE e afirmou, maliciosamente: "A secretária Rice não faz a política dos EUA. O presidente faz a política dos EUA." Os países europeus orientais também estão claramente apreensivos com a idéia de ver suas políticas externas dirigidas a partir de Bruxelas; para eles, a Otan não é uma relíquia da guerra fria, e sim um testemunho vivo de sua liberdade. O que me traz de volta a Wagner.

Em Munique, o compositor alemão foi tema constante das conversas. Rumsfeld repetiu o velho adágio segundo o qual a música de Wagner é melhor do que soa. Joschka Fischer, o ministro do Exterior alemão, insistiu que prefere Mozart. Mas enquanto absorvia as mudanças na paisagem da política externa européia e percebia as preocupações dos países europeus orientais representados, lembrei-me da observação de Woody Allen: "Não posso ouvir tanto Wagner. Começo a sentir a ânsia de invadir a Polônia."