Título: Calote, a defesa dos perdedores!
Autor: Alcides Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Calote ou moratória unilateral, como queiram, é uma prática bem mais antiga do que a maioria imagina. De acordo com a revista The Economist, nos últimos 175 anos a Argentina deixou de honrar sua dívida externa em cinco ocasiões, a Venezuela, em nove, e o nosso país usou o mesmo artifício sete vezes. Como se vê, o Brasil é um dos líderes do mercado de maus pagadores, além de fazê-lo de forma variada e criativa. No fim da década de 1980, o presidente José Sarney declarou moratória unilateral da nossa dívida externa. Isso ocorreu num momento difícil para todos os países, pois o vertiginoso aumento das taxas de juros internacionais elevaram significativamente o peso da dívida. O Brasil "quebrou", como quebraram outros países, surgindo daí o Plano Brady, que orientou a renegociação das dívidas externas de todos os países afetados, entre eles o México e a Argentina. Embora, hoje, o ex-presidente Sarney admita - como fez na última semana no programa Roda Viva, da TV Cultura - que "foi um erro", houve certa compreensão do mercado internacional, pois fato externo, grave, afetou todos os países endividados. Como resultado do Plano Brady - que impunha perda de até 35% aos credores -, os países perderam o crédito dos bancos internacionais. De lá para cá, os bancos passaram simplesmente a financiar as operações de comércio exterior (exportação e importação), financiando as empresas que operam no país, e não mais o próprio país envolvido.

No começo da década de 1990 - exatamente há 15 anos -, foi a vez de a ministra Zélia Cardoso de Mello anunciar nova forma de calote, o Plano Collor, agora afetando o bolso do cidadão brasileiro. Com uma penada só, todos os brasileiros passaram a possuir, no máximo, Cr$ 50 mil de liquidez, equivalentes, na época, a US$ 1.300. O restante dos depósitos e aplicações financeiras ficaria retido por 18 meses, sendo liberado parceladamente daí para a frente. Foi o maior confisco da poupança de um povo.

Mais recentemente, foi a vez de o prefeito José Serra anunciar que não saldará, até o fim de seu governo, a dívida de R$ 2,1 bilhões com prestadores de serviços e fornecedores. São 12.875 credores, que receberão pequena parte este ano e o restante dividido em sete parcelas a serem pagas a partir de 2006. É certo que a ex-prefeita Marta Suplicy deixou as finanças de São Paulo em estado bem pior do que as encontrou, mas todos já sabiam disso antes das eleições. Tal medida vai punir tanto empresas que se aproveitaram das obras eleitoreiras de 2004 como as que tradicionalmente superfaturam, pois sabem que o governo não é o melhor pagador. Mas, certamente, atingirá milhares de empresas que agem e sempre agiram corretamente e que, portanto, terão dificuldades de honrar impostos e salários de seus funcionários. Isto é, mais uma vez o trabalhador é que vai pagar a conta.

Entretanto, de todos os calotes dos últimos 175 anos, o que mais chamou a atenção foi o da Argentina em 2001, pelos altos valores envolvidos (mais de US$ 80 bilhões) e pelo "tamanho" do calote, com perda de até 70% dos valores investidos em papéis argentinos. Como cerca de 76% dos credores acabaram aderindo aos termos estabelecidos pelo governo argentino (não havia alternativa, ou se aceitava ou se iria receber na Justiça), o presidente Kirchner veio às ruas e, dizendo-se "vitorioso", discursou: "A velha Argentina que apostava no fracasso acabou. Surge uma nova Argentina . Um povo com esperança." Nada mais falso. Em vez de se desculpar pelos danos causados àqueles que acreditaram na Argentina ao longo dos últimos anos, o presidente Kirchner colocou em si próprio a faixa de "vencedor", quando, na realidade, é mais um "perdedor".

Difícil acreditar que existam pessoas inteligentes que estejam vibrando e apóiem o "êxito" do presidente argentino. Alegam que a culpa é do FMI, que apoiou a desastrada Lei da Conversibilidade implementada pelo ministro Cavallo em 1991, pela qual um peso seria igual a US$ 1. É verdade, o FMI, em vez de politicamente se acomodar aos desejos de Cavallo e seus companheiros de governo, deveria, isso sim, ter forçado o governo argentino a cair na realidade e a alterar a lei antes que o país ruísse de vez. Entretanto, não é o culpado FMI que está pagando a conta do calote. A Argentina deve ao Fundo cerca de US$ 14 bilhões e esse crédito não foi afetado. Portanto, ambos os "perdedores" - Argentina e FMI - saem "vitoriosos", deixando o ônus para os investidores privados.

Ainda, aqueles que defendem o "feito" do presidente Kirchner também alegam que os investidores deveriam saber que estavam correndo riscos maiores, pois os títulos argentinos pagavam prêmio acima da taxa básica dos títulos norte-americanos. É verdade, mas só que os prêmios dos papéis argentinos antes do calote eram semelhantes, e até inferiores, aos que o Brasil paga quando emite títulos nos mercados internacionais. Seguindo essa lógica, todos aqueles que hoje compram "bonds" brasileiros deveriam estar preparados para sofrer um calote "à la Argentina", sem reclamações.

Como podemos observar, se a moda pega, isto é, se o calote argentino passar a ser imitado por outros governantes e os "perdedores" a ser tratados como "vitoriosos", os países também perderão o crédito do setor privado, pois nenhum investidor estará disposto a comprar papéis de países emergentes, na medida em que o risco seja muito superior aos benefícios oferecidos. E aí ficará sobrando o FMI, com recursos limitados, mas inúmeras restrições.