Título: A irresponsabilidade fiscal e nós, contribuintes
Autor: Martus Tavares
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Espaço Aberto, p. A2
O presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em maio de 2000. Os primeiros governantes a terem todo o mandato sob a vigência dessa lei foram os prefeitos que concluíram sua administração no fim de 2004. A sociedade brasileira tem motivos para comemorar o quinto aniversário da LRF. O superávit primário do conjunto dos Estados e municípios subiu de 0,2% para mais de 1% do PIB entre 1999 e 2004. Embora ainda não tenham sido publicados os balanços relativos a 2004, a grande maioria dos municípios está enquadrada nas regras e nos limites fixados na LRF. Mas nem sempre foi assim. Confesso que a frustração que vivi durante anos na administração federal foi um dos fatores que mais me motivaram a liderar o processo de elaboração no Executivo e aprovação no Congresso da LRF. Durante 20 meses, o Brasil inteiro discutiu e torceu pela aprovação do projeto. Desse exemplo dado pela maioria do Congresso brotou uma enorme esperança, que não contou com o apoio de nenhum daqueles que faziam oposição ao governo FHC.
Da morte da velha prática nascia a esperança. Acreditávamos que nunca mais neste país ouviríamos falar de heranças malditas (as verdadeiras, é claro) recebidas dos antecessores. Pensávamos que nunca mais o contribuinte seria chamado a pagar a conta da irresponsabilidade de governantes que, tendo a obrigação de bem administrar o dinheiro do público, não demonstram vocação nem capacidade para geri-lo com responsabilidade, eficácia e eficiência.
Infelizmente, a irresponsabilidade fiscal foi a marca de alguns prefeitos que concluíram o mandatos no fim de 2004. O mais triste é que alguns desses prefeitos irresponsáveis, como que movidos por uma intenção não declarada, assumiram o mandato pedindo mudanças na LRF!
Não há razão para que esse tipo de comportamento perdure. Não há motivo para que o contribuinte pague a conta da irresponsabilidade fiscal. Não há por que os irresponsáveis não serem punidos. Basta que a LRF seja cumprida. Para comprovar essa afirmação lembro alguns dispositivos da LRF, em especial os aplicáveis aos anos eleitorais.
Essa lei obriga à fixação de metas fiscais para cada ano e determina o corte de despesas (e não o aumento de impostos) como forma de reequilibrar as contas, caso necessário;
obriga o Executivo a demonstrar o cumprimento dessas metas em audiência pública na respectiva Casa Legislativa, a cada quatro meses;
proíbe licitações que representem aumento de despesa não prevista no orçamento;
estabelece regras severas para evitar o endividamento público, cujos limites são definidos pelo Senado Federal;
proíbe aumento da despesa de pessoal nos últimos 180 dias do mandato;
veda a contratação de dívida baseada em antecipação de receitas, no último ano do mandato;
veda a criação de obrigações que não possam ser cumpridas integralmente nos últimos oito meses do mandato ou que tenham parcelas a ser pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para essa finalidade;
determina a divulgação de Relatório da Gestão Fiscal a cada quatro meses, emitido pelos titulares de cada Poder, para acompanhamento das Casas Legislativas e da sociedade.
Cumpridos tais dispositivos, não há possibilidade de o contribuinte pagar a conta da irresponsabilidade.
Lendo o noticiário, duas questões me preocupam. Primeiro, com todos esses dispositivos em vigência, como pôde um prefeito ter deixado as finanças de seu município em frangalhos? As regras e os limites estavam na lei para serem cumpridos. Os instrumentos de correção de eventuais desvios estavam à disposição. Os relatórios quadrimestrais deveriam ter sido elaborados pelos prefeitos e analisados pelas Câmaras Municipais para prevenir problemas. Segundo, como e por que os sistemas de controle prévio disponíveis (ao cidadão, mídia, Câmaras, tribunais de contas, organizações da sociedade, etc.) falharam?
Meu diagnóstico é que falhamos como cidadãos. Não vigiamos a gestão desses prefeitos, não checamos se as informações estavam sendo disponibilizadas ao Legislativo ou, quando disponíveis, não as analisamos nem questionamos sua veracidade. Também falharam os órgãos de fiscalização e controle - Câmaras e tribunais de contas -, que deveriam ter agido tempestivamente. Resta ajudar as novas administrações a pôr a casa em ordem e pressionar os órgãos competentes para que julguem e punam os irresponsáveis. Também nesse campo a legislação é clara. Os crimes estão tipificados e as penalidades, previstas.
Peço licença para recordar um artigo que escrevi, neste mesmo jornal, em setembro passado (antes de se consumarem alguns dos problemas conhecidos hoje), chamando a atenção para notícias divulgadas na mídia dando conta de descumprimento, por alguns municípios, de dispositivos da LRF, particularmente quanto à obrigação de divulgar dados da gestão fiscal e à criatividade contábil usada para driblar os limites de endividamento.
Se os alertas tivessem sido levados em consideração, muito poderia ter sido evitado. Há tempo o governo federal está brincando com fogo com as interpretações flexíveis dos dispositivos da LRF. Repito o que disse naquela oportunidade: o êxito do regime fiscal vigente não depende apenas do cumprimento de metas dos governos federal e subnacionais, como é o caso exemplar do Estado de São Paulo, mas, sobretudo, da rigorosa observância das regras fiscais e da boa prática de transparência na gestão dos recursos do público.
Mantenho a esperança de que não será esse pequeno número de irresponsáveis que comprometerá a consolidação da cultura de responsabilidade fiscal neste país.
Martus Tavares, secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo, foi um dos autores do projeto de LRF