Título: O Tesouro indefeso
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Editorial, p. A3

O panorama visto da Praça dos Três Poderes é de assustar. O governo caiu em estado de catalepsia porque, entra semana, sai semana, entra mês, sai mês, o presidente Lula não consegue consumar a tal da reforma ministerial cuja única finalidade é "pavimentar os trilhos", como diria ele, para a sua reeleição. Na Câmara dos Deputados, desde a eleição de Severino Cavalcanti, a situação é "de vaca não reconhecer bezerro", como ele talvez dissesse se não estivesse desfrutando dos píncaros da glória, termo que usou para descrever como se sentia ao assumir a presidência da Casa. A primeira vítima dessa combinação de acefalia executiva e anomia parlamentar - rara mesmo para os padrões da política brasileira - são as contas públicas. Com o governo e os partidos da base aliada voltados para a dança das cadeiras ministeriais, com a Câmara derivando ao sabor do que Severino chama "o meu jeito de governar", ao largo dos entendimentos regulares entre o presidente da Mesa e os líderes de bancada, que dão rumo à instituição - sem falar que o líder do Planalto, Professor Luizinho, é um espectro à espera de ser exorcizado, e o titular da Articulação Política, Aldo Rebelo, se tornou um verdadeiro ministro sem Pasta -, o que se viu ali no decorrer desta semana foi o contubérnio do arrastão financeiro com a irresponsabilidade política.

Quase de um só fôlego, a Câmara criou a CPI da privatização do setor elétrico (enquanto o Senado criava, no papel, a das privatizações em geral e a do Waldogate) e a Mesa aprovou o aumento severino de 25% para a verba de gabinete dos 513 deputados. "É o caos", resumiu um veterano observador do Congresso, o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto de Queiroz. Ainda assim, a esbórnia da verba, que custará ao contribuinte cerca de R$ 100 milhões por ano, é café pequeno perto de outro assalto ao trem pagador a que os deputados se entregaram com a desenvoltura daqueles que perderam o freio político e o senso do interesse público. A oportunidade foi a votação da chamada PEC paralela.

Trata-se do projeto de emenda constitucional que abranda as regras estabelecidas na reforma da previdência do funcionalismo. É um caso escabroso, desde o começo. A versão aprovada no Senado manteve a prerrogativa dos desembargadores de receber até - e até, nessa eterna farra do boi com dinheiro alheio, quer dizer "não mais", nunca "menos de" - 90,25% do salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal, superando os proventos dos governadores de Estado. O que a Câmara fez, sem que o Planalto pudesse enquadrar a base aliada, foi estender esse privilégio a delegados de polícia, procuradores e auditores fiscais. "Deixaram a coisa lá correr solta", comentou, sem exagerar, o senador mineiro Eduardo Azeredo, presidente do PSDB.

É de esperar que isso não se repita no Senado, onde a matéria terá de ser reexaminada - e onde situação e oposição parecem dispostas a rejeitar a insanidade cometida na outra Casa, pelo seu impacto devastador sobre as finanças estaduais. Ainda bem, porque seria temerário subestimar o poder de pressão dos aquinhoados com essa regalia - os quais estão se lixando para o esforço dos Estados para conter os seus déficits previdenciários. E pensar que por pouco o plenário não aprovou também o restabelecimento da aposentadoria integral dos servidores. Graças ao vice-presidente da Mesa, o pefelista José Thomaz Nonô, de Alagoas, que dirigia a sessão e apressou o término da votação, o Tesouro livrou-se de um rombo - imediato - de R$ 14 bilhões.

Antes disso, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deu a sua contribuição para a gastança, ao aprovar projeto que diminui a idade mínima para acesso aos benefícios da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), que dá aos idosos que não recolheram para o INSS o direito a uma paga mensal vitalícia. A lei é meritória, mas a antecipação pretendida - que poderá onerar o Tesouro, apenas este ano, em R$ 15 bilhões - atenta contra o equilíbrio financeiro do País. A passagem do projeto naquela comissão apenas quer dizer que é constitucional. Mas, assim como no Senado em relação à PEC paralela, situação e oposição precisarão somar forças na Câmara para que a proposta não prospere quando se julgar o seu mérito. Isso exige que o governo e a base aliada se recomponham o quanto antes.