Título: Questão de Taiwan expõe as duas faces de uma China em ascensão
Autor: Joseph Kahn
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Internacional, p. A20

Os líderes chineses decidiram este mês Assembléia Nacional do Povo dotar-se de autoridade legal para atacar Taiwan se decidirem que o território em disputa foi longe demais no caminho da independência. Foi seu mais ousado ultimato até hoje, sustentado pelo Exército chinês, que se moderniza rapidamente. Mas a manchete em letras garrafais do dia seguinte no China Daily, o jornal oficial de língua inglesa, foi: "Paz é prioridade na Lei Anti-Secessão."

A China crescente tem duas faces. Seus líderes querem ser vistos como administradores de uma nova espécie de superpotência emergente, que não vai ameaçar os vizinhos ou o mundo. Só um gigante gentil pode atrair US$ 60 bilhões em investimento estrangeiro e acumular US$ 160 bilhões anuais em superávits com os Estados Unidos, segue o raciocínio.

Mesmo assim, o Partido Comunista também concluiu que perderia poder se cedesse Taiwan. A nova lei, em vigor desde a última segunda-feira, é apenas a última tentativa de provar que o partido vai pagar qualquer preço, até mesmo uma guerra que pode muito bem envolver os Estados Unidos, para preservar a integridade territorial chinesa.

"Nossas elites sabem que a China vai ter dificuldade de elevar-se se o mundo se preocupar com uma nova ameaça militar", disse Jin Canrong, especialista em política exterior da Universidade do Povo, em Pequim. "Mas a China também pode não se elevar" se Taiwan se declarar independente, acrescentou ele, estimando que Taipé poderá acabar fazendo isso, "a menos que a ameaça de força seja muito real".

A China não tem ambições imediatas de abalar a ordem mundial ou desafiar os EUA, dizem muitos analistas. Washington quer manter a coisa dessa maneira. Mas Taiwan está despertando os instintos mais agressivos da China, com resultados imprevisíveis.

"Não sei qual lado está ganhando - o lado que quer lutar pelos interesses nacionais ou o lado que aceita as normas internacionais", disse Philip Yang, especialista na Universidade Nacional de Taiwan, em Taipé.

A China cresceu porque se dedica ao desenvolvimento econômico enquanto deixa os EUA policiar a região e o mundo. Pequim às vezes contesta a hegemonia americana, mas seus líderes vislumbram a Pax Americana se estendendo pelo século 21 adentro, pelo menos até a China tornar-se uma sociedade de classe média e, se a atual tendência continuar, a maior economia do mundo.

A China insiste que não quer se envolver em brigas. As máximas de sua política externa - princípios de coexistência pacífica, orientação pacífica, crescimento pacífico, desenvolvimento pacífico - têm a mesma ênfase.

Pequim gasta muito mais recursos em projetos domésticos, como pontes e edifícios de escritórios, do que no Exército. Sua estratégia econômica depende pesadamente da integração com o mundo exterior, diferentemente do que ocorria na Alemanha e no Japão anos antes de se afirmarem na primeira metade do século 20.

"(Os chineses) querem ter um crescimento pacífico porque são forçados", disse Robert G. Sutter, ex-funcionário do Conselho Nacional de Segurança dos EUA e especialista em Ásia na Universidade de Georgetown. "Eles fizeram uma análise de custo-benefício e descobriram que é muito mais caro ser antagonista" dos EUA.

A China está estreitando relações com a maior parte dos países. Recentemente, resolveu disputas de fronteiras com a Índia e a Rússia, apoiou a guerra americana ao terror, amenizou reivindicações territoriais no Mar do Sul da China, atraiu vizinhos do Sudeste Asiático para um pacto comercial e até intensificou a ajuda externa.

Taiwan é a grande exceção. As relações entre ambos se deterioraram desde meados dos anos 90. Isso em grande parte porque o movimento de independência de Taiwan cresceu em popularidade. Chen Shui-bian, o presidente de tendência pró-independência, venceu duas eleições. Mas as tensões também cresceram porque Pequim mostrou pouca flexibilidade ou criatividade ao acomodar a democraticamente declarada preocupação de Taiwan com relação ao continente.

A estratégia chinesa normalmente parece limitada a refletir a certeza de um ataque se Taiwan tentar criar uma identidade legal separada. A lei anti-secessão pode ter sido adotada precisamente porque parece atar as mãos da liderança - e fazer a guerra parecer inevitável - se Taiwan mudar formalmente seu nome ou redesenhar cláusulas delicadas em sua Constituição.

Em um certo sentido, isso é apenas mais direto. A China sempre cospe fogo quando o assunto é a independência taiwanesa, tanto assim que Chen e muitos outros políticos em Taiwan têm minimizado as ameaças chinesas. Eles acreditam que a China não vai atacar de verdade porque está mais preocupada com o desenvolvimento interno, com ser o país anfitrião da Olimpíada de 2008 e evitar um conflito com os EUA, do que em assegurar a soberania sobre Taiwan.

Mas os líderes de Pequim também concluíram que o Partido Comunista precisa impor um limite para os separatistas taiwaneses. O partido pôs em jogo sua reputação para recolocar a nação chinesa no lugar que considera adequado no mundo.

Depois do retorno de Hong Kong ao controle chinês em 1997, Taiwan é o lembrete mais visível do desmembramento que a China sofreu nas mãos de forças estrangeiras no final da dinastia Qing (embora muitos taiwaneses digam que a ilha não pertencia ao continente na época, assim como não pertence hoje).

A China trata Taiwan como território soberano. Então, insiste que sua beligerância não deve ser vista como nociva a sua relação com outros países. Até a lei adotada segunda-feira dedica três seções a aberturas pacíficas para Taiwan. Só a quarta e última seção aponta as condições sob as quais a China deve considerar outros meios, aos quais a lei se refere vagamente como "não pacíficos".

Os gastos militares na China elevaram-se recentemente, com o orçamento oficial aumentando para US$ 30 bilhões para o ano fiscal de 2005. Mas analistas ocidentais dizem que os verdadeiros gastos podem ser duas ou três vezes mais altos. O alvo é Taiwan. Mas os novos caças chineses Su-30MKK e submarinos de ataque classe Kilo, ambos de fabricação russa, podem causar muitos danos à frota americana no Pacífico, e a escalada alarmou o Japão.

"Taiwan é um problema para os EUA e o Japão tanto quanto é para a China, porque é a desculpa que Pequim usou para fortalecer seu Exército", disse Jin, da Universidade do Povo. "Se não houvesse a questão de Taiwan, a China teria dificuldades para justificar esse tipo de gasto."

Um diplomata europeu em Pequim disse que a lei anti-secessão, principalmente se provocar uma resposta similar de Taiwan, pode aumentar o risco de conflito e levar a União Européia a adiar o levantamento do embargo de armas à China, uma das maiores prioridades de Pequim.

As relações com o Japão estão cada vez mais complicadas. A animosidade histórica por causa da ocupação da China pelo Japão teve seu papel. Mas o Japão descobriu recentemente um submarino chinês mapeando o fundo do oceano em águas territoriais japonesas, possivelmente se preparando para uma batalha marítima por Taiwan ou fontes de energia. E o Japão se uniu aos EUA em fevereiro em uma promessa pública de defender Taiwan, enfurecendo Pequim.

Em sua busca por energia, a China também se pôs a favor do Irã e do Sudão, países ricos em petróleo que têm relações problemáticas com o Ocidente. Ameaçou usar seu veto na ONU para evitar sanções internacionais contra o Irã por causa de seu programa nuclear ou contra o Sudão por causa do genocídio que teria sido cometido lá.

"Eu os vejo cada vez menos conciliatórios em questões que eles consideram interesses vitais", disse Bonnie Glaser, especialista em China do Centro de Estudos Internacionais em Washington. Ela citou o Japão, a segurança energética e Taiwan como exemplos de abordagens mais nacionalistas da China.

Cada vez mais, há duas Chinas no palco mundial. Uma tem noções de soberania e destino histórico do século 19. A outra abraça noções de integração global do século 21. A lei anti-secessão parece uma vitória da primeira.