Título: Educação, um direito do imigrante
Autor: Renata Cafardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Vida &, p. A22

São várias as tentativas de garantir o direito e nenhuma delas ainda definitiva ou inquestionável. No Brasil, crianças e adolescentes estrangeiros ou filhos de estrangeiros em situação ilegal nem sempre conseguem lugar em escolas públicas. A solução pode estar vindo com um novo projeto de lei preparado pelo Ministério da Justiça, que já está na Casa Civil - a legislação em vigor é de 1980 e encara o imigrante como um problema de segurança nacional. Ele assegura a educação como parte dos direitos humanos e, portanto, não pode ser negada a quem estiver em território brasileiro. O número atual de imigrantes no País é de 830 mil, segundo o governo federal (ver texto ao lado). Há estimativas de cerca de 50 mil estrangeiros ilegais. "Enquanto o pai não sai do País ou não legaliza sua situação, a criança tem de estudar", diz o secretário executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto.

O paraguaio A.M. chegou ao Brasil na semana passada. Entrou a pé, atravessando a Ponte da Amizade, com a mulher e duas filhas pequenas. "Aqui tem trabalho, lá pagam muito pouco", diz ele, que já tinha tudo arranjado para atuar numa pequena confecção comandada por coreanos, como a maioria dos latinos humildes em São Paulo. Paga-se cerca de R$ 0,30 por peça produzida e a carga horária chega a 12 horas.

Levando na mão uma espécie de diploma que diz "mención de honor" (menção de honra) e um boletim com as boas notas da filha Ani, de 7 anos, que estudou durante um ano no Paraguai, A.M. pediu uma vaga na Escola Estadual Caetano de Campos. "Eles disseram que eu precisava do histórico escolar, que não podia matriculá-la sem o documento", conta. A escola, segundo ele, ainda reclamou que faltava a assinatura da diretora no diploma da menina. "Ela não pode ficar sem estudar", lamenta.

No Brasil, o ensino fundamental começa justamente aos 7 anos e não faz sentido, portanto, a exigência de "histórico escolar". O pai de Ani foi três vezes à escola e então resolveu procurar a Pastoral do Imigrante, no centro da cidade, que dá auxílio jurídico aos estrangeiros. "Tenho medo de que a escola chame a Polícia Federal", disse. Avisada pela reportagem do Estado, a secretaria estadual da Educação informou à escola que esse não era o procedimento correto e a criança deveria ser matriculada.

Em São Paulo, duas resoluções de conselhos de educação tentam garantir que essa história não seja comum no ensino público. "A função da escola é educacional e pedagógica. A instituição escolar não pode ser usada com objetivos policiais", diz o texto do parecer aprovado por unanimidade no ano passado pelo Conselho Municipal de Educação. O relator Artur Costa Neto, educador da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), diz que a norma surgiu para esclarecer dúvidas de diretores, que procuravam o conselho em busca do que fazer em caso de filhos de imigrantes ilegais.

"Não é porque o pai não está com sua situação regularizada que a criança não tem direito a ter um futuro", justifica o educador. Outro parecer, agora estadual, também exige tanto a matrícula quanto a entrega do certificado de conclusão da criança, independentemente da condição dos pais.

CONFUSÃO

O que mais confunde diretores de escolas é o artigo da Lei dos Estrangeiros, de agosto de 1980, estipulando que a "a matrícula em estabelecimento de ensino de qualquer grau só se efetivará se o mesmo (o estrangeiro) estiver devidamente registrado". O problema da legislação, segundo interpretação de alguns especialistas, é que ela é anterior à Constituição Federal, de 1988, cujo texto menciona que brasileiros e estrangeiros residentes no País têm direito à educação, à saúde, à segurança e ao lazer, entre outros. "O direito à educação é universal e precede as soberanias nacionais", completa o educador Alípio Casali.

Eleny, de 3 anos e meio, nunca freqüentou a escola e a mãe, boliviana, se surpreendeu quando a criança pegou a caneta com a mão esquerda para desenhar nos corredores da Pastoral do Imigrante. Os pais vieram da Bolívia há cinco anos e - mesmo tendo uma filha brasileira, o que facilita a concessão do visto permanente - ainda não tiveram sua situação regularizada. "Não posso trabalhar porque há mais de um ano não consigo vaga em creches para ela", reclama a mãe.

Apesar de os brasileiros também sofrerem com a falta de instituições públicas que atendam crianças de até 4 anos, a mãe acha que ser estrangeira dificultou ainda mais sua situação. "Eles dizem que não entendem bem o que eu falo, que vão me ligar quando a vaga aparecer, mas espero há dois anos."

A advogada que trabalha na Pastoral do Imigrante, Ruth Camacho, conta que recebe constantemente reclamações de jovens que estudaram na rede pública e, ao terminar o curso, não recebem seus diplomas ou documentos de transferência por serem filhos de imigrantes ilegais.

O boliviano Daniel Poma, de 18 anos, ainda não tem seu comprovante de término do ensino fundamental. Seu pai, Angelo, que mora no Brasil desde 1991, diz que não tem o dinheiro para pagar as multas e regularizar a situação de toda a família no País. Ele ainda reclama do racismo e preconceito entre os alunos em escolas brasileiras, relatados também por outros estrangeiros ouvidos pela reportagem. "Eu apanhei e tive de mudar de escola", conta Daniel.

Outra boliviana, Janete Lequipe, ganhou dinheiro no País e resolveu pôr o filho de 13 anos numa escola particular. "Quando ele tinha 7 anos, fui de escola em escola e me diziam que ele não tinha direito à vaga porque éramos estrangeiros ilegais", conta. Ela morava no centro da cidade e só conseguiu que o menino fosse aceito numa escola da Penha. "Mesmo assim, ele foi discriminado por professores e colegas e não adiantava reclamar. Agora, na escola particular, a gente paga e eles atendem melhor."

Segundo o Ministério da Justiça, o País não dificulta a regularização de estrangeiros que queiram fixar residência no Brasil, a não ser que sejam criminosos. Imigrantes com mais de 18 anos que queiram estudar podem requerer visto de estudante apresentando comprovante de matrícula; as crianças não precisam do documento. O máximo de multa cobrada é de R$ 700 por pessoa da família que está ilegalmente no País.

A nova Lei dos Estrangeiros deve ser liberada para consulta pública nas próximas semanas. Entre outras coisas, ela prevê que imigrantes atraídos para o País com promessas falsas - que acabam vítimas de trabalho quase escravo - tenham sua regularização facilitada. De tempos em tempos, o governo concede anistia imigratória, oferecendo o visto de residência permanente. A última foi em 1998. "O Brasil, na sua história, foi sendo construído por imigrantes. Precisamos garantir os direitos dos estrangeiros aqui para defender os dos brasileiros lá fora", diz o secretário executivo do ministério.