Título: De volta ao ensino, 150 anos depois
Autor: Biaggio Talento
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Vida &, p. A23

O primeiro centro de ensino de Teologia e Direito Canônico do Brasil, criado pelo Mosteiro de São Bento de Salvador em 1596, voltou a funcionar - agora como faculdade aprovada pelo Ministério da Educação - no mês passado, depois do fechamento dos cursos em 1855 por decreto imperial. As turmas de bacharelado em Teologia e licenciatura em Filosofia da Faculdade de São Bento da Bahia resgatam a missão dos primeiros beneditinos em terras brasileiras de formar o clero nativo num País que estava nascendo. Enquanto os jesuítas se preocupavam em catequizar e alfabetizar os índios, os beneditinos logo perceberam a necessidade de, além disso, formar intelectualmente os noviços no Brasil, para não submetê-los às perigosas travessias oceânicas, impostas pela necessidade de estudar em Portugal. Dez anos após a fundação do curso de Teologia em Salvador, o mosteiro já tinha 20 monges baianos. Esse número passou a 100 na metade do século 17.

Os cursos de Filosofia e Teologia atraíam estudantes de todo o Brasil e, nesse ambiente, surgiram no século 17 os primeiros gênios das artes: Frei Agostinho da Piedade, primeiro escultor acadêmico em atuação no Brasil, e o arquiteto Frei Macário de São João, um dos introdutores do estilo renascentista nas terras brasileiras. O poeta Junqueira Freire, no século 19, e o historiador d. Clemente da Silva Nigra, já no século 20, também integram a lista dos luminares que passaram pelo mosteiro de Salvador, fundado em 1582.

A nova faculdade é mais uma prova da capacidade de renovação da ordem religiosa que talvez tenha sido a que enfrentou mais obstáculos para se consolidar na Bahia. O mosteiro foi tomado e praticamente destruído pelos holandeses na ocupação de Salvador em 1624. No século 18 entrou na lista negra do poderoso Marquês de Pombal, que fechou todos os noviciados de ordens religiosas em Portugal e no Brasil - reabertos após sua queda, em 1789. E, na segunda metade do século 19, minguou com apenas um monge por causa do decreto de d. Pedro II que impedia a admissão de noviços nos mosteiros do País.

Mesmo na República, quando os beneditinos repovoaram seus monastérios, os monges de Salvador tiveram de convocar a população para proteger o conjunto arquitetônico de São Bento, que seria demolido em 1912 num dos planos de remodelação do centro capitaneado pelo governador José Joaquim Seabra. Os beneditinos ficaram na frente das máquinas e o projeto acabou mudado.

BIBLIOTECA

Embora o mosteiro tivesse reaberto o colégio de ensino fundamental em 1905, a idéia de retomar os estudos de Filosofia e Teologia surgiu em 1997. Inicialmente, foi criado em 2001 o Instituto Teológico de São Bento, cujos cursos não eram homologados como de graduação pelo MEC até a direção fazer o pedido formal ao ministério, no ano passado.

No processo de análise, os técnicos do MEC enviados para verificar instalações, equipamentos e corpo docente da candidata gostaram tanto do que viram que aprovaram de uma só vez os cursos de graduação, mestrado e doutorado - os dois últimos devem ser instituídos no segundo semestre. Um dos itens que mais pesou na aprovação foi a magnífica biblioteca beneditina, cujo acervo de 300 mil volumes é considerado um dos mais raros das Américas. Tem publicações de antes do descobrimento do País. Um dos documentos importantes é o Livro Velho do Tombo, no qual estão registradas as primeiras doações ao convento, entre as quais as terras legadas por Catarina Paraguaçu, mulher de Diogo Alves Correia, o Caramuru, no final do século 16.

Se no passado o ensino religioso era fundamental para a sobrevivência do clero no Brasil, hoje a formação em Teologia e Filosofia ainda tem importância expressiva, sobretudo para pessoas ligadas às religiões cristãs. A maioria dos 80 alunos das duas turmas é formada por seminaristas e leigos. Mas há um número razoável de profissionais liberais, que buscam aprofundar os estudos sobre a história das religiões.

O diretor da faculdade, d. Gregório da Paixão, lembra que, além disso, os bacharéis em Teologia e Filosofia têm mercado certo como professores do ensino médio. E, se fizerem pós-graduação, podem lecionar em cursos universitários. "É por isso que as 80 vagas foram avidamente disputadas por 250 candidatos."

Para ele, pessoas com formação em Teologia e Filosofia estão capacitadas a analisar, entender e explicar os acontecimentos do mundo. E, por serem centros de pensadores, essas escolas nunca foram bem vistas pelos governos. No Mosteiro de São Bento, isso ocorreu ao longo de sua história. Foi sob a proteção de suas paredes que o jesuíta Antonio Vieira preparou sua defesa quando convocado pela Inquisição, no século 17. Mais recentemente, o local abrigou perseguidos políticos da ditadura militar.

Com o Colégio São Bento de ensino médio, um estacionamento pago e dez imóveis no centro de Salvador, a faculdade completa o programa de autogestão do mosteiro, que arrecada o suficiente para manter suas obras de caridade e evangelização. Além de preservar o conjunto tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que abriga ainda o museu sacro.