Título: A delicada tarefa de lidar com a dor
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Vida &, p. A22

Quando o médico olha para o quadro ao lado, ele imagina que o autor desenhou pessoas em volta de uma mulher que está doente ou morta, na cadeira. O copo vermelho em cima da mesa significa que o paciente cuspiu sangue por estar com alguma doença, como tuberculose. Já o psicólogo diria que a obra transmite dor e sofrimento. O copo, a prova de que os sentimentos são mesmo ruins. E um enfermeiro? Que as pessoas ao redor da paciente estão tentando ajudá-la. As análises da obra Morte no Quarto da Doente, do norueguês Edvard Munch (1863-1944), estão entre os pontos altos do curso Práticas Psicológicas no Hospital Geral, do Hospital São Luiz, em São Paulo. As aulas, com duração de quatro meses, já estão na sétima edição e ensinam com exemplos (reais ou não) como o profissional de saúde deve lidar com a dor e o sofrimento do paciente. "O médico é treinado para tirar a doença e a dor", diz uma das organizadoras, a psicóloga Fernanda Gouveia, do Hospital São Luiz e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "O sofrimento não dá para tirar. E é por isso que ele tem dificuldade e sofre quando tem de lidar com o sentimento."

A imagem daquele médico firme e inabalável diante do doente é um clássico. A maioria dos pacientes é até conivente com a atitude, valorizando muito mais a competência técnica do profissional. Mas o que deve ter mais peso durante o tratamento de alguém que sofre de uma doença séria, o conhecimento da prática médica ou o entendimento da dor?

Para o oncologista Drauzio Varella, a resposta certa é: as duas coisas. O que ele pensa sobre o assunto tem peso e não só pela dura experiência diária de cuidar de pacientes com câncer. O livro Por um Fio (Companhia das Letras), de sua autoria, descreve a convivência do médico com a dor por meio da perspectiva da morte e do comportamento dos pacientes e sua família.

"A doença crônica ou grave, por exemplo, afeta não só o corpo, mas a vida toda do paciente e isso não pode ser deixado de lado pelo médico", diz Varella. "Muitos profissionais criam uma carapaça, mas a medicina só tem sentido, é eficaz e dá prazer quando existe envolvimento com o paciente, o que envolve sofrimento. Só que não é fácil permitir-se esse envolvimento."

LIMITES

Um dos especialistas no assunto, o filósofo italiano Maurizio Mori, professor de Bioética na Universidade de Pisa e pesquisador em Bioética no Centro Politéa, em Milão, afirma que a função do médico é também cuidar da dor e não só da doença, mas com restrições. "Ele tem de aliviar a dor e o sofrimento do paciente, mas dentro de seu próprio limite para ser um bom profissional", disse ao Estado, por e-mail.

O limite entre a frieza e o devido distanciamento do médico é muito tênue. A recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM) é que o médico evite tratar de parentes e de amigos próximos com a justificativa de que a emoção nesses casos pode atrapalhar o tratamento.

O médico Hélio Schainberg, infectologista do Hospital Albert Einstein, defende a tese de que na medicina quanto mais distante o médico for mais próximo do diagnóstico ele consegue chegar. "A emoção subvaloriza ou supervaloriza o diagnóstico", conta. "Mas é muito, muito difícil não se envolver. Sou de carne e osso. O que tento fazer é 'falar o idioma' do paciente, me fazer ficar parecido com ele."

Em dezembro de 2003, por exemplo, uma jovem paciente pediu ao infectologista uma consulta de urgência, à noite. Algumas manchas haviam aparecido em sua perna e ela queria se livrar logo daquilo, já que ia viajar. Gentil, Schainberg brincou com a menina, dizendo que ela era bonita e as manchas não iam atrapalhar em nada. Ela, então, sorriu. "Quando olhei para a boca dela, vi que tinha sangue na gengiva. Aí, a coisa mudou. A combinação com as manchas poderia ser sinal de leucemia. E era", lembra ele. O final foi feliz, o câncer foi tratado a tempo. "Mas nem quero imaginar o que poderia ter acontecido se eu não a tivesse feito sorrir."

FASE TERMINAL

Não há regras na medicina sobre o assunto. Por conta disso, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) começou na terça-feira passada uma câmara técnica para discutir o tema da morte. Durante dois meses, psicólogos, médicos de várias áreas, filósofos e advogados vão se reunir a cada duas semanas na cidade para tentar criar recomendações sobre como o médico deve enfrentar a morte de pacientes em fase terminal.

O grupo vai debater sobre questões técnicas e polêmicas, como morte cerebral (encefálica) e eutanásia, e também sobre a relação sentimental do médico com situações de sofrimento do paciente. "É impossível não se envolver emocionalmente com o paciente. Mas, ao mesmo tempo, a relação não pode ser exagerada", explica Reinaldo Ayer, conselheiro do Cremesp e professor de bioética da Universidade de São Paulo (USP). "O médico tem de conseguir deixar o hospital e voltar para casa como um homem comum para não endurecer."

Para Bernardo Garicochea, oncologista e hematologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e diretor do Serviço de Oncologia da PUC do Rio Grande do Sul, existe um sinal bem claro que define até que ponto o médico deve ir para evitar a rigidez. "Quando a idéia de entrar no quarto do paciente que está sofrendo é terrível para o médico ou o mesmo acontece na hora de falar com a família desse paciente, é que tem alguma coisa errada. Ele tem de parar", avalia.

Garicochea chegou a perder pacientes há dez anos por conta desse princípio. "Quando minhas filhas nasceram, fiquei sem conseguir tratar de crianças por dois anos. Era muito próximo da minha realidade."

SOLIDÃO

Talvez um dos momentos mais difíceis para o médico que lida diariamente com dor e sofrimento alheios é quando ele conhece o diagnóstico negativo do paciente e ainda não o comunicou a ninguém. "É a hora de maior solidão", descreve Drauzio Varella.

Há dez anos, o infectologista Schainberg viveu uma experiência assim. Uma garotinha foi com a mãe em seu consultório para saber o resultado de um exame. "Ela tinha leucemia e eu estava com o resultado na mão. Aquilo foi terrível para mim. Não a deixei entrar. Fui para casa, escutei Vivaldi no último volume e chorei. Precisei de tempo para me recuperar", conta. "Hoje, para tentar não levar a dor e o sofrimento para casa, mantenho atividades prazerosas que não tenham ligação com a medicina. Adoro fotografia. É uma atividade oposta da minha profissão."

Nenhum desses relatos foi tirado do curso aos profissionais de saúde do Hospital São Luiz, que já reuniu 300 alunos. As conclusões dos médicos, incluindo a do quadro do artista holandês, são tiradas de outras experiências profissionais das organizadoras do curso, em trabalhos com grupos menores, por exemplo.

"As aulas são abertas a todos, mas até agora o único médico que nos procurou para ter aulas saiu no meio porque foi morar fora do País", conta a psicóloga Adriana Loduca, organizadora das aulas. De fato, a platéia na aula de terça-feira era só de psicólogos. "Agora aprendemos que, para atrair o médico, o curso tem de ter outro título, mesmo tratando do mesmo tema. Por exemplo, 'como lidar com fatores estressantes na profissão'", explicou.