Título: Orçamento impositivo: idéias para o senador Calheiros
Autor: Maílson da Nóbrega
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Economia, p. B4

Em discurso após a sua eleição para a presidência do Senado, o senador Renan Calheiros defendeu um Orçamento impositivo e transparente, o que melhoraria a qualidade do gasto público. "Esse tema estará no topo da nossa agenda nos próximos dois anos." Bravo! Está mesmo na hora de mudar. É menos difícil do que se imagina. O Orçamento é uma lei que deve ser cumprida, mas no Brasil se inventou que ele é autorizativo, isto é, o governo cumpre o que quer. Na verdade, é quase assim, pois não há como fugir das despesas obrigatórias: transferências constitucionais para Estados e municípios, Previdência, pessoal, educação, saúde e juros, que representam cerca de 90% do total.

Já foi muito pior. Até a década de 80, havia uma espécie de caixa dois por onde fluíam, fora do Orçamento, os gastos com financiamento oficial para a agricultura e às exportações, subsídios e acumulação de reservas internacionais. Esse caixa dois cobria também as despesas do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários, do defunto Instituto Brasileiro do Café e de outros departamentos e autarquias.

O Tesouro Nacional era uma entidade virtual. Suas funções eram executadas pelo Banco Central e pelo Banco do Brasil. Os três se amalgamavam em relações promíscuas. A fonte de recursos era a dívida pública - que podia expandir-se sem autorização legislativa - e as emissões de moeda.

O conjunto de receitas e despesas desse mundo institucionalmente jurássico era o Orçamento Monetário, um balancete consolidado do BB e do BC. Sua aprovação cabia ao Conselho Monetário e não ao Congresso.

Transparência zero.

Tudo isso começou a mudar com as reformas introduzidas a partir dos anos 1980, cujo pontapé inicial foi a extinção da "conta de movimento" do BB. Remanescem, todavia, dois resquícios de primitivismo institucional: (1) as vinculações de receitas a despesas; (2) o conceito de Orçamento autorizativo.

A primeira é difícil de eliminar no curto prazo, dada a força contrária dos grupos de interesse. A segunda depende do Congresso. Se quiser, o senador Calheiros pode contribuir para uma mudança histórica.

A rigor, não é preciso lei para estabelecer o Orçamento impositivo. A Constituição já assim determina ao adotar o verbo "fixar" para a despesa e "estimar" para a receita (art. 165, 8.º). Talvez conviesse, todavia, criar uma lei complementar (para valer também nos Estados e municípios) na linha da Lei de Responsabilidade Fiscal. A nova lei diria que o Orçamento é impositivo e fixaria normas para sua aprovação e modificação.

A lei criaria um arranjo pelo qual não mais se poderia emendar a proposta do Executivo para reestimar a receita. Seria uma medida moralizadora. Hoje, pode haver emendas quando for necessário corrigir "erros e omissões" (art. 166, parágrafo 1.º, inciso III, alínea "a").

Acontece que a regra é usada não para corrigir erros e omissões, mas para inflar a receita e abrigar o maior número de emendas criadoras de despesas. Essa distorção está na origem da desmoralização do processo orçamentário.

Se a receita e a despesa não forem mais infladas pelo Congresso, o Executivo dispensará o decreto de programação, com o qual decide descumprir a lei orçamentária. Nos primeiros anos, poderia haver uma piora da qualidade - e não a melhoria imaginada pelo senador - se os parlamentares cancelassem dotações para investimento para atender seus interesses eleitorais. Como ocorre no sistema democrático, com o tempo seriam criados constrangimentos aos exageros do paroquialismo.

Entre as mudanças, caberia tornar permanente a comissão especial instituída anualmente para examinar a proposta orçamentária. Estaria criado um fórum específico para debate das questões orçamentárias.

Procedimentos regimentais seriam estabelecidos para lidar com as emergências e ajustes no caso de queda de receita. Há inúmeros exemplos. O presidente George W. Bush conseguiu aprovar em poucos dias bilhões de dólares para financiar a guerra do Iraque.

O governo perderia um instrumento para formar maiorias, qual seja, a liberação de emendas quando desejasse barrar CPIs ou aprovar projetos complexos, mas isso não seria ruim. A democracia sairia ganhando. No final, o processo orçamentário daria um passo gigantesco rumo à sua maturidade institucional.

Mãos à obra, senador!