Título: Karol: um polonês autocentrado
Autor: Mario Sergio Conti
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Aliás, p. J2

João Paulo II está com um tubo na garganta. Emagreceu, toma antibióticos fortes e vive num quarto atopetado de aparelhos médicos, onde é acompanhado por especialistas em infecções respiratórias e Alzheimer. No entanto, dia sim, dia não (e às vezes dia sim, dia sim) ele posa para câmaras de televisão: encurvado, o olhar fixo e inexpressivo, torto, tremebundo, balbuciante. Suas imagens podem despertar pena. Podem também servir de inspiração, pois evidenciariam uma teimosa vontade de viver. Podem ainda revelar um insopitável apego ao poder. Podem, por fim, reciclar um surrado recurso de evangelização da Santa Madre, o da martirização, no qual o sofrimento serve de propaganda da fé.

O espetáculo (pois se trata de um espetáculo) pode se prestar a interpretações pias ou cínicas. O que parece fora de dúvida é que Karol Wojtyla já não é senhor de seus recursos de expressão. Recursos ecléticos e poderosos, pois se trata de um ex-ator de teatro (John Gielgud, o falecido ator inglês, disse uma vez que João Paulo II tinha um notável senso de ritmo), de um dramaturgo diletante, de um poeta bissexto, de um teólogo militante, de um tribuno televisivo e de um aspirante a filósofo.

Conforme a idade e as doenças papais avançavam, definhava sua capacidade de expressão. O Vaticano se adaptou às restrições e deu origem a uma indústria de imagens de seu chefe. É entrar numa livraria católica e lá está, infalível, a estante com os DVDs de Wojtyla atraindo multidões na África ou conduzindo missas solenes, fitas de áudio dele rezando o rosário, coletâneas de suas homilias e encíclicas.

João Paulo II e o Vaticano montaram um outro esquema, o dos livros instantâneos. Nos últimos dez anos foram três livros de prosa e um florilégio de versos. Os em prosa tiveram um tremendo sucesso, vendendo milhões de exemplares em dezenas de países.

Tamanho sucesso só pode ser atribuído aos mistérios da fé. A leitura de Wojtyla requer paciência de Jó. Seus livros não chegam a ser mal escritos porque nem sequer foram escritos. Sua base são entrevistas ou reminiscências orais, pesadamente editadas por invisíveis (e crispadas) mãos vaticanas. O texto não flui: lembranças líricas são interrompidas de supetão por intrincados raciocínios teológicos e infindáveis citações bíblicas. São livros que têm tudo para aborrecer tanto o iniciado como o iniciante em questões católicas.

Mas cumprem uma função. Aqui e ali, o papa os salpica com palpites políticos extremados e ataques desabusados contra tudo o que, mesmo vagamente, cheire a modernidade. Como vivemos numa sociedade de massas, compreensivelmente esses trechos são os mais divulgados - e o papa acaba dando o seu recado, no mais das vezes curto e grosso.

O mais recente dessa produção em série, Memória e Identidade, lançado no mês passado, segue o mesmo modelo, exacerbando-o. A introdução do livro, não assinada, informa que ele teve origem em entrevistas que João Paulo II concedeu em 1993 a dois professores poloneses (um deles com um prenome de oito consoantes e apenas uma vogal). A partir da transcrição da entrevista, o papa teria retrabalhado o texto, introduzindo novos temas. Com 192 páginas, o livro comporta 175 citações da Bíblia e textos eclesiásticos.

O tema das entrevistas iniciais era apenas um, o totalitarismo do século 20, encarnado pelo nazismo e pelo comunismo. É um tema complexo, para dizer o mínimo. Wojtyla achou pouco. Ao voltar às entrevistas, houve por bem acrescentar outros assuntos, como o patriotismo, a nação, a história, o conceito de cultura, a Europa, as relações entre Igreja e Estado. Afora os temas sacros de sempre: liberdade, amor, misericórdia, redenção, etc.

Como corolário de seu caráter desconjuntado, Memória e Identidade traz ainda um epílogo sobre a tentativa de assassinato de João Paulo II, em 13 de maio de 1981. É de se perguntar: o que tem a ver o nazismo e o comunismo com os dois tiros que Mehmet Ali Agca deu em Wojtyla? Nada. A não ser que se prove que Agca foi alugado pelos soviéticos para assassinar o papa. Como nem a Justiça italiana, nem a CIA, nem os arquivos dos serviços secretos dos países stalinistas apresentam evidências do envolvimento soviético, a hipótese da responsabilidade comunista pelo atentado só sobrevive como insinuação. Insinuação que o papa retoma em Memória e Identidade. Para ele, o atentado foi "uma das últimas convulsões das ideologias de poder que se desencadearam no século 20".

Para acrescentar um grão de sal ao livro, o papa radicalizou algumas de suas posições mais conhecidas. Ele associa o direito ao aborto ao extermínio de judeus pelos nazistas, defende que o casamento de homossexuais é expressão do Mal e diz que se deve duvidar da democracia.

Apesar de seus problemas de construção, e das pitadas sensacionalistas, Memória e Identidade é o melhor livro do papa. Como em nenhum outro, ele se revela em profundidade. E se revela como um polonês que pretende explicar o mundo a partir de sua vivência polonesa. Para ele, a Polônia é o centro do mundo e da história.

Em matéria de visão egocêntrica, Memória e Identidade tem poucos rivais na literatura católica. Nem as Confissões de Santo Agostinho são tão autocentradas. O nazismo e o comunismo não são vistos como entidades autônomas: eles são captados pela experiência polonesa, pela maneira como Wojtyla os viveu como seminarista, vigário, bispo e cardeal.

O "polonocentrismo" chega a ser pitoresco. Lá pelas tantas, o papa diz: "Sabemos que o século 19 marcou o apogeu da cultura polonesa." Como, "sabemos"? Eles lá, os poloneses, podem saber. E podem saber quem são os escritores, poetas, dramaturgos, pintores, escultores e músicos (à exceção de Chopin) citados por João Paulo II para sustentar sua afirmação.

Num outro momento de exaltação, ele coloca num mesmo patamar a independência americana (1776), a Revolução Francesa (1789) e a proclamação da Constituição polonesa (1791) para marcar o nascimento da idéia de direito nacional. E não tem uma palavra a dizer sobre as Américas, a Ásia, a África, a Oceania e a experiência humana e histórica de alguns bilhões de pessoas desses continentes.

O polonocentrismo é engraçado mas é explicável. Assim como na Grã-Bretanha a rainha, na França a República, e no Brasil o futebol, na Polônia o catolicismo exprime a identidade nacional. Para Wojtyla, Polônia e catolicismo são quase a mesma coisa - e João Paulo II é a expressão máxima do conjunto. Daí a condenação de quase tudo o que não seja católico e/ou polonês. Para ele, a Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa, Descartes, Kant, Sartre, tudo aquilo que define uma vertente decisiva da cultura e da história européias é intrinsecamente mau e perverso.

A visão idealizada da Polônia leva o papa a realizar piruetas dialéticas. Ele não pode, por exemplo, condenar absolutamente a Revolução Francesa, pois é no seu bojo que surge Napoleão Bonaparte, e o Corso é um herói na Polônia. Até seu Hino Nacional enaltece o imperador: "Bonaparte nos mostrou/ como vencer com orgulho." Desmembrada em 1795, a Polônia não existiria se o elã revolucionário não a tivesse libertado. É por isso que Memória e Identidade elogia os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade - ainda que para defender que tais ideais se encontram nos Evangelhos.

O que não é pouca coisa. Quando procura exemplos de sociedades modelares, Wojtyla lembra de duas: a das tribos israelenses do tempo de Moisés e a Europa da Idade Média e do Renascimento. Supondo que Moisés tenha realmente existido (o que é mais que improvável), sua sociedade era fanaticamente teocrática. E a Europa admirada pelo papa, em que pesem os exemplos que ele cita, como as catedrais românicas e góticas, as basílicas barrocas e renascentistas, as pinturas de Giotto e Fra Angelico, era um continente dominado, grosso modo, por uma teocracia obscurantista agressiva e guerreira, centrada no Vaticano.

O marketing do Vaticano vem divulgando Memória e Identidade como uma espécie de último testamento de João Paulo II, seus derradeiros ensinamentos. Pode ser. A história dirá. No imediato, o que se percebe com mais facilidade no livro é o auto-retrato de um católico que erigiu suas idiossincrasias polonesas em dogmas pétreos.