Título: "Operação Moisés"
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/03/2005, Notas e Informações, p. A3

E m matéria de festa propriamente dita, o PT já fez melhores do que a do último fim de semana, no Recife, pela passagem dos 25 anos do partido. Começa que foi uma comemoração tardia - precisou ser adiada para não coincidir com o primeiro aniversário da revelação de que Waldomiro Diniz, o velho amigo e braço direito do ministro da Casa Civil, José Dirceu, tinha no seu passado recente uma história de extorsão e tráfico de influência. Por sinal, algo que se não pode imaginar que o ministro desconhecesse quando o nomeou assessor do governo para assuntos parlamentares - acertar a vida dos políticos, em suma.

Depois, o partido não sabia onde fazer a festa. Em Belo Horizonte, como se pensara, já não poderia ser depois que o mineiro Virgílio Guimarães, ao se lançar candidato avulso à presidência da Câmara dos Deputados, ajudou a derrotar o candidato oficial Luiz Eduardo Greenhalgh e por isso foi punido com um ano de suspensão (o que ele considerou uma manifestação de stalinismo). Já Recife tinha a contra-indicação de ser a capital do Estado a cujo governo quer concorrer o ministro da Saúde Humberto Costa, em vias de ser defenestrado do Gabinete de Lula - ou assim parecia até a semana passada.

Mas, talvez para acabar de uma vez por todas pelo menos com mais essa novela, já que a outra, a da reforma ministerial, o partido não controla, cumpriu-se enfim o ritual da celebração, de que participaram, segundo o noticiário, quatro ministros, um senador e uma dezena de deputados federais - tantos quantos foram ao evento promovido em São Paulo pela esquerda petista, para deplorar o que Lula, em mensagem aos companheiros reunidos no Recife, disse que não fez: "Uma ruptura na dinâmica de construção do PT" (embora aludisse às "contradições previsíveis do exercício do poder").

Contradição por contradição, a do Recife foi uma amostra de livro de texto. Pois o que ali se festejou, incomparavelmente mais do que o quarto de século do PT, foi a figura ausente do seu fundador. Em vez de concentrar as homenagens nos seus militantes - aqueles que fizeram a história do partido, como bem observou a prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins, da ala dita radical da agremiação -, os mestres-de-cerimônias José Dirceu e José Genoino colocaram Lula literalmente no centro da festa. Um vídeo de 13 minutos exibido na ocasião privilegiava a trajetória do presidente, sobrepondo-o a qualquer outra dimensão, real ou simbólica, do percurso petista.

O ponto culminante foi o discurso em que Dirceu anunciou o óbvio - a candidatura Lula à reeleição - e foi mais longe do que o chefe em matéria de metáforas, comparando-o a ninguém menos do que Moisés, que resgatou os hebreus da servidão no Egito e os conduziu à Terra Prometida, numa jornada de 40 anos. Ao assegurar que o PT não vai esperar 40 anos para fazer as reformas libertadoras do povo brasileiro, deixou no ar, inadvertidamente decerto, a sugestão do horizonte de tempo dos sonhos políticos petistas. Mas a "Operação Moisés" lançada pelo ministro tem um componente peculiar.

Os hebreus precisaram de Moisés para fugir do Egito, mas não para chegar a Canaã; o profeta os deixou antes disso. Já o projeto petista de ficar no poder depende exclusivamente, como a festa no Recife deixou mais claro do que nunca, da popularidade pessoal do seu nume tutelar. Não há mais a menor dúvida de que os interesses do Partido dos Trabalhadores se tornaram caudatários dos interesses de Luiz Inácio Lula da Silva. O que ele considerar bom para si, o PT terá de considerar por definição bom para si também. Eis uma amarga ironia.

O partido nasceu com a louvável pretensão de ser uma alternativa ao eterno domínio dos caciques sobre os partidos brasileiros, da mesma forma como a meta do sindicalismo petista era superar a herança da tutela getulista. Pois bem: hoje o PT é um instrumento de Lula não menos do que o PTB original era um instrumento de Vargas. O que significa que o partido terá de se conformar com os arranjos fisiológicos cada vez mais indigestos do presidente e acolher os seus rompantes apoteóticos como se fossem pura expressão da verdade.

Sexta-feira, em Aracaju, por exemplo, ele disse que "estamos conseguindo até com relativa facilidade mudar a geografia social do mundo para enfrentar, de um lado, os Estados Unidos, de outro, a União Européia". Nem Moisés ousaria tanto.