Título: Perdoar ou não perdoar, eis a questão
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Dois fatos novos se acrescentaram, na semana passada, ao debate sobre a polêmica da discriminação racial no Brasil: o perdão pela escravatura dito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos africanos na Casa dos Escravos, na ilha de Gorée, no Senegal, e a queixa de racismo feita à polícia pelo futebolista patrício Grafite contra o adversário argentino Leandro Desábato, após um jogo no Estádio do Morumbi. A atitude do presidente chamou a atenção geral pelo ineditismo: nunca um governante brasileiro se referira antes de forma tão enfátíca, em solo africano, à maior nódoa moral de nossa História: os três séculos em que cativos africanos foram transportados para trabalhar sob regime de escravidão em propriedades rurais, aqui. Lula fez questão de se eximir pessoalmente do crime de nossos ancestrais: "Não tenho nenhuma responsabilidade pelo que aconteceu nos séculos 16, 17 e 18." Isso não foi propriamente novo para seus públicos lá e cá. Pois os africanos já sabem que a escravatura foi abolida no Brasil há 116 anos e nós já nos habituamos a não responsabilizar o presidente sequer pelas brutalidades atuais cometidas por seus assessores - tais como a convocação dos idosos para filas pelo companheiro petista Ricardo Berzoini para provarem que existiam e as tiradas insensíveis de outro correligionário, o dr. Humberto Costa, sobre crianças índias e pacientes terminais mortos no Mato Grosso e no Ceará, sem falar na tentativa deste de "estatizar" a eutanásia, dando a burocratas federais a função de porteiros de UTI.

De qualquer maneira, dá para entender as lágrimas nos olhos dos presentes no momento em que Lula declarou ser "uma boa política dizer ao povo do Senegal e da África perdão pelo que fizemos aos negros". Até a franqueza presidencial é comovente: afinal, ele não pediu, mas disse o perdão dos negros e o fez, como ficou claro, por isso ser "bom politicamente". Pode até ser, mas muito correto historicamente não é. Nunca houve dúvidas de que o mais vil dos mercados, o de compra e venda de seres humanos, enriqueceu muitos brasileiros do lado de cá e do lado de lá do Atlântico e que esses ricos senhores anularam, sob o peso de suas bolsas carregadas de ouro, todas as tentativas do Estado de impor limites a esse negócio asqueroso até que uma Lei dita Áurea lhe pusesse fim, sem, contudo, como sempre lembrou o mais talentoso dos abolicionistas, Joaquim Nabuco, cuidar de inserir os afro-brasileiros na economia nacional.

Uma conversa instrutiva com um funcionário federal, o diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva, profundo conhecedor do tema, teria, contudo, esclarecido ao presidente alguns pontos que, ficando obscuros no perdão que ele disse, continuarão alimentando mitos que em nada ajudam a integrar os descendentes de escravos na sociedade brasileira. O primeiro destes pontos é que esses mercadores desumanos não eram apenas arianos de raça pura, mas muitas vezes mulatos (como o baiano Francisco Félix de Souza, o Chachá) e até negros. Nem caçavam e aprisionavam suas "mercadorias" para encher os porões dos navios negreiros, mas as compravam de chefes tribais africanos que enriqueciam movendo guerras contra tribos rivais, subjugando e vendendo os vencidos como escravos. A fortuna do Chachá só se tornou lendária no Ajudá mercê da sociedade com o dadá (rei local) Guezo.

O perdão dito pelo presidente também teria de ser complementado com um pedido formal de desculpas à Grã-Bretanha, cuja Marinha, considerada então senhora dos mares, perseguiu durante quase um século a frota de mercadores como Chachá. Embora reinasse em territórios sobre os quais o Sol não se punha e tivesse provocado prejuízos de monta para os traficantes brasileiros, a maior potência imperial do século 19 nunca conseguiu impedir o asqueroso tráfico humano, que tentou proibir.

Por mais comovente que tenha sido o discurso do chefe do governo em seu périplo africano, convém reconhecer que a luta contra o racismo recebeu na semana passada contribuição maior dada por um afro-brasileiro, o atacante do São Paulo Ednaldo Batista Libânio, cuja cor da pele é descrita no apelido pelo qual é conhecido: Grafite. Ao se queixar à polícia dos insultos que ouviu do adversário branco argentino Leandro Desábato, na partida de seu time contra o Quilmes na quarta-feira passada, no Morumbi, ele deu uma lição de cidadania. E trouxe a lume um drama que vem sendo empurrado para baixo do tapete aqui e lá fora, qual seja a discriminação racial nos gramados de futebol do mundo inteiro.

Ao dizer seu perdão, Lula repetiu o velho hábito brasileiro de imaginar que para resolver os problemas, por mais complexos que eles sejam, basta enunciá-los, o que pode até ser muito comovente, mas na prática não funciona. As circunstâncias da prisão e humilhação do argentino por policiais brasileiros também foram contaminadas por alguns de nossos maiores vícios institucionais, tais como o exagero passional e o patológico exibicionismo. Ainda assim, o episódio deveria servir para pôr termo às manifestações racistas dentro e fora dos gramados (dos coros de "macaquitos" nos estádios argentinos às imitações canhestras de micos ou arremesso de bananas das arquibancadas italianas e espanholas) com ações repressivas da Fifa (cuja origem inglesa lhe deveria transmitir a obrigação moral de repetir o feito de sua esquadra) e das autoridades daqueles países.

Portanto, entre o perdão que o presidente disse e o perdão que craque negou, aquele pode ter comovido mais, mas este, sim, é que talvez possa produzir mais efeitos positivos sobre a emancipação que os descendentes de africanos ainda não alcançaram no Brasil.