Título: A falta que fazem os heróis morais
Autor: Luiz Weis
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Pobre da terra que precisa de heróis, disse o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, pela boca do seu personagem Galileu Galilei. Pobre do mundo, então, condenado a esperar por outro Karol Wojtyla, de qualquer religião - ou de nenhuma. Porque tardará a nascer, se nascer, o dia em que serão comuns a todos os homens e mulheres, como uma segunda natureza, os atributos morais - ou seja, valores vividos - que ao longo da História fizeram de alguns deles exceções à regra; excepcionais, literalmente.

Esses atributos decerto constituem o mais precioso patrimônio da humanidade, com o que se quer dizer, primeiro, que são inerentemente humanos, podendo, portanto, se expressar em qualquer um; e, segundo, que sem eles a espécie desapareceria, na barbárie da inevitável guerra de todos contra todos.

Apesar de sua grandiloqüência e das infelizes associações com a mitologia fascista do super-homem, heroísmo talvez seja ainda o termo menos imperfeito para dar conta do conjunto desses traços de personalidade e comportamento, universalmente reconhecidos como virtudes.

Esse reconhecimento, porém, nem sempre torna os seus portadores heróis universais. A estatura heróica de João Paulo II é irrefutável. Já o sentido do seu heroísmo é polêmico, por corresponder - ao lado de notáveis gestos humanitários - a uma imposição tirânica e indiscriminada de dogmas petrificados.

É impossível saber quantos dos milhões de católicos que invadiram Roma depois da morte do papa e pediam nas ruas a sua beatificação já (santo súbito, diziam os cartazes; santo, santo, dizia o coro) jamais usariam camisinha, jamais se divorciariam e jamais praticariam ou consentiriam no aborto.

Há quem especule que pudessem ser muitos, principalmente entre os mais jovens. Há quem afirme o contrário, invocando a aparente propagação do conservantismo religioso nas novas gerações de crentes (ou de indiferentes convertidos em praticantes) cristãos, islâmicos ou judeus.

A questão vem a calhar. Pois, ou por estar de acordo com o papa ou apesar de não levá-lo ao pé da letra, a multidão e os muitos mais que compartilhavam seus sentimentos, os olhos nas tevês, celebravam as qualidades que encarnava e que o elevaram, se não de imediato à santidade, de há muito à condição de herói.

A imensa popularidade do papa resultou do entrelaçamento do colosso humano que foi Wojtyla - para o bem e, no caso da aids, para o mal - com o aparato da maior corporação da Terra, a Igreja Romana, e suas falanges leigas, e com a onipresença da televisão, cujas pulsões teatrais tudo tendem a transformar em espetáculo de altos teores emocionais.

O New York Times assinalou desde logo: "O Papa João Paulo II foi um homem que usou os instrumentos da modernidade para lutar contra o mundo moderno e tirou partido de todos os meios de comunicação para propagar a sua mensagem." Com o seu sucessor, Joseph Ratzinger, não deverá ser diferente.

Pode ser que a massa atraída pelo papa viesse "mais pelo cantor do que pela canção", conforme o comentário de um cético cardeal. Mas, pensando bem, a distinção é discutível. Quando se trata de heróis, o meio é a mensagem.

Uma coisa se confunde com a outra quando o que se ressalta é a força interior, a paixão, a coerência, a coragem moral (e física), a obstinação, o despojamento pessoal e a prontidão para o sacrifício em nome de causas defendidas com uma convicção capaz de calar o mais empedernido dos desconfiados.

Na luta do papa pela paz, igualdade e coexistência religiosa - a face luminosa do seu legado -, o que contou mais: o cantor ou a canção? Ambos tinham pela frente um mundo que se tornara, afinal, o "vasto arsenal de mercadorias" de que falava Marx já em 1867, e que se desenganara das utopias igualitárias.

Diante do egoísmo dos ricos e da desesperança dos pobres, do consumismo da minoria e das privações da maioria, do cinismo diante da morte das ideologias, da destruição ambiental provocada pela opulência e pela miséria, João Paulo II, cantor e canção, deu tudo de si para persuadir os povos de que só a fé os salvará - aqui, na Terra.

Eis o motor do seu heroísmo, favorecido pelo vácuo de figuras inspiradoras que arrebatariam pelo exemplo de sua vida e por propagar os mesmos valores da ética social do papa. Historicamente, essas bandeiras as religiões poucas vezes empunharam. A fé separou (e destruiu) muito mais do que uniu.

Nenhum papa, nem mesmo o boníssimo reformador João XXIII, rivalizou em heroísmo - no sentido deste texto - com Mohandas Gandhi, Franklin Roosevelt, Ho Chi Minh, Martin Luther King, Nelson Mandela e Che Guevara. Tão diferentes e tão próximos, continuam a tocar o coração do mundo.

Um, com a espantosa arma da não-violência, começou a acabar com o colonialismo. Outro, o líder mais progressista da História de seu país, foi a luz que socorreu um tempo de treva. Outro foi o Davi contra o Golias da nossa era. Outro viveu e morreu pelo sonho de uma sociedade sem segregação. Outro ainda passou preso quase três décadas para libertar o seu povo do jugo racista. E o último virou o símbolo de uma aventura humana levada de peito aberto até o fim.

Diziam que ao novo papa não servirão os sapatos de João Paulo II - serão sempre demasiado grandes. Se assim é, pode-se dizer também que, com exceção de Mandela, que completará 87 anos em julho, não há personalidade política viva que se compare àqueles titãs. Nem os mensageiros do humanismo na aristocracia cultural e na cultura popular - como foram, a seu modo, Albert Einstein, Bertrand Russell e John Lennon.

Pobre do mundo que precisa de heróis - e, ainda por cima, não os acha.