Título: O sucessor natural de Wojtyla O sucessor natural de Wojtyla
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2005, Notas & Informações, p. A3

N a apoteose de devoção popular em que se transformou o funeral de João Paulo II, a mensagem era clara. Num mundo atribulado por rápidas mudanças, atentados terroristas, relativização de valores morais, multiplicação de seitas, ascensão de fundamentalismos, o rebanho católico quer um timoneiro de mão firme no comando da barca de Pedro. Foi isso que João Paulo II representou em seu longo, profícuo e coerente pontificado e que as multidões aplaudiram. Multidões formadas em grande parte por jovens, de quem freqüentemente não se espera entusiasmo diante de autoridades morais. A mensagem foi ouvida com clareza plena no colégio cardinalício. Com rapidez inédita na história da Igreja, os cardeais escolheram aquele que entre eles demonstra ter melhores condições para levar adiante a obra de João Paulo II, o alemão Joseph Alois Ratzinger, agora Bento XVI.

Pensador de extrema coerência, admirado por ex-alunos e respeitado pelos que pensam diferentemente dele, Ratzinger foi o conselheiro mais próximo de João Paulo II, contribuindo de maneira decisiva para o sucesso de sua missão. Não é difícil encontrar entre os biógrafos do polonês Karol Wojtyla aqueles que apontam como uma das principais decisões de seu papado, se não a principal, a escolha de Ratzinger para a chefia da Comissão para a Doutrina da Fé, em 1981. Também são freqüentes as afirmações de que Wojtyla admirava no companheiro de trabalho a capacidade intelectual e a firmeza que demonstrava na manifestação de suas opiniões.

"Depois de João Paulo II, os cardeais elegeram um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor", disse o novo papa diante da multidão reunida na Praça de S. Pedro, logo após ter sido escolhido. Ele tem sido um incansável trabalhador a serviço da Igreja desde sua ordenação, há 53 anos.

Já era um conhecido professor de teologia, catedrático na Universidade de Bonn, quando foi chamado para atuar como peritus nos debates do Concílio Vaticano II, assessorando o cardeal reformista Josef Frings. Apoiou o espírito de aggiornamento daquele encontro, mas, depois das revoltas estudantis de 1968 e da crescente aproximação de alguns bispos e teólogos da ideologia marxista, começou a alertar para os excessos do concílio.

Em 1977, ajudou a fundar a revista Communio, com o objetivo de dar combate a uma linha de pensadores europeus, depois seguida por americanos e latinos, segundo a qual o Vaticano II criara um permanente espírito de mudança, que transcendia aquilo que o próprio concílio havia votado. Para esses pensadores, toda a doutrina da Igreja devia ser questionada, como se tivessem a intenção de reescrever o Evangelho.

Ratzinger e o grupo de teólogos alinhados com ele defendiam que a intenção de João XXIII não fora a de mexer nos depósitos da fé e alertavam para o risco de se transformar a Igreja numa espécie de parlamento. Seu esforço chamou a atenção de Paulo VI, que o designou para o comando da Arquidiocese de Munique, em 1977.

No ano seguinte, no conclave que elegeu o sucessor de Paulo VI, ele teve um papel fundamental, defendendo a escolha de alguém com autoridade moral para conter os excessos e capaz de promover uma nova evangelização, de acordo com o espírito do Vaticano II. Propôs o nome de Wojtyla.

No Vaticano, foi a força propulsora no combate à Teologia da Libertação. Em 1984, num longo debate que travou com Leonardo Boff, em Roma, disse a ele que não se podia subordinar a fé à ideologia marxista.

Combateu a relativização de valores morais no capitalismo e defendeu o diálogo com outras religiões, mas sem nunca perder de vista seu papel de guardião da doutrina, sem sucumbir a modismos que, em última instância, parecem destinados a adaptar a fé para ser melhor vendida no crescente mercado de religiões.

Em sua homilia na missa de abertura do conclave, que certamente influenciou os cardeais, lembrou o combate que travou ao lado de Wojtyla ao dizer: "A pequena barca com o pensamento cristão sofreu pela agitação das ondas, arrastada de um extremo a outro: do marxismo ao liberalismo até a libertinagem, do coletivismo ao individualismo mais radical, do ateísmo a um vago misticismo, do agnosticismo ao sincretismo." Para ele, "a fé adulta não segue modas".

A decisão do colégio cardinalício não implica vencedores e vencidos no conclave. Mas, se fosse para apontar um grande vencedor, seria João Paulo II. Indubitavelmente.