Título: Mortos por vírus em Angola passam de 200
Autor: Denise Grady
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2005, Vida&, p. A14

Para evitar a propagação do Marburg,angolanos mudam o ritual funerário O caixão era pequeno demais, apesar dos cuidados tomados para a construção dele. As medidas não levaram em conta o grosso saco plástico, tamanho adulto, que envolveria o bebê - uma menina de 1 ano de idade - para evitar a propagação do vírus Marburg que a matara. Os médicos da Organização Mundial da Saúde (OMS), encarregados de desinfetar e preparar o corpo da criança para o enterro, enfim, conseguiram ajeitar o cadáver no caixão. Até a última quinta-feira, a epidemia do vírus Marburg já havia matado 207 das 224 pessoas reconhecidamente contaminadas na área de Uige. A doença se desenvolve há meses, mas só foi reconhecida em 21 de março. Não há sinais de que tenha sido controlada. O vírus é transmitido por fluidos corpóreos e a única maneira de evitar a propagação é localizar e isolar as pessoas infectadas, potenciais transmissores.

Mas os angolanos resistem às recomendações da saúde pública, porque não querem ver entes queridos levados para salas de isolamento, onde não poderão receber visitas. Além disso, o isolamento até na morte vai contra as tradições funerárias de lavar o corpo e dar um beijo de adeus. Os funerais precisam ser realizados adequadamente para mostrar respeito e afeição pelos mortos e evitar o desleixo com espíritos.

Os cientistas tentam misturar ciência e tradição. "Podemos deter o surto em duas ou três semanas se as pessoas confiarem em nós e cooperarem", disse Pierre Formenty, virologista, um dos médicos da OMS. "De outro modo, isso pode não ter fim." Ele reconhece: "Estamos travando a batalha da doença. Mas, antes, precisamos vencer a batalha do coração e a batalha do funeral."

Formenty contou ter sido chamado pelos familiares da criança, que queriam ter o corpo adequadamente preparado para eles mesmos fazerem o funeral, em vez de permitir que os militares o fizessem - como o governo tem encorajado. O médico viu soldados enterrando uma pessoa: apressados, jogaram o saco com o corpo na sepultura e bateram em retirada. "Foi repugnante. Se fosse um parente meu, acho que teria matado alguém."

A menina morta completou um ano na sexta-feira. Não teve hemorragia e o vírus só foi identificado depois do óbito. "Acho que a mãe a contaminou", afirmou Enzo Pisani, do grupo de ajuda humanitária italiano Médicos com a África. A mãe da menina, uma enfermeira de 37 anos, ainda está viva, mas tinha febre há 10 dias. Poucas vítimas do Marburg vivem tanto. Os médicos têm certeza de que ela foi contaminada e pode estar entre a minoria que sobrevive.