Título: O recado que vem de Severino
Autor: Leonardo Avritzer
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Aliás, p. J3

A sociedade mudou. O Executivo corre atrás dela. Mas o Parlamento continua a ser o bastião dos clientelistas.

A eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados essa semana confirma a atualidade de um dos clássicos da ciência política no Brasil, o livro de Vitor Nunes Leal intitulado Coronelismo, enxada e voto. Nesse livro, o autor defende duas teses: a primeira delas é que o nível local no Brasil é marcado por relações hierárquicas e de dependência pessoal que predeterminam a constituição do sistema político. Esse fenômeno, conhecido como clientelismo, retira a autonomia e a capacidade de decisão dos atores políticos, substituindo a cidadania pela dependência em relação a um chefe local. A segunda tese do livro é de que, com a modernização, o Brasil se livraria do clientelismo que é um fenômeno de sociedades rurais e não modernas. A eleição de Severino Cavalcanti confirma a primeira tese e nega a segunda. Ela coloca, inevitavelmente, a pergunta acerca do motivo pelo qual a modernização brasileira não nos livrou do clientelismo. A análise da biografia de Severino Cavalcanti e dos seus posicionamentos políticos, nos diferentes momentos da história recente do Brasil, nos permite responder a essa pergunta. A sociedade brasileira tal como a conhecemos hoje é resultado da formação de uma sociedade civil democrática e da luta por ela capitaneada pela democratização do País. Esse processo implicou uma importante renovação valorativa que começou com a transformação da democracia em um valor absoluto entre todos os atores políticos e continuou com a organização de movimentos sociais reivindicadores de direitos e de cidadania nos anos 80. Os primeiros embates entre a nova sociedade e o regime autoritário se deram no final dos anos 70. Naquele momento, a Arena, partido pelo qual Severino Cavalcanti entrou na política, perdia espaço e discutia até onde estava disposta a ir para barrar o avanço dos novos atores sociais. Severino Cavalcanti teve a sua primeira atuação de destaque nesse momento. Liderou o movimento pela expulsão do padre Vito Miracapillo do Brasil, exatamente na ocasião em que os trabalhadores rurais se organizavam na Zona da Mata em Pernambuco. Ou seja, o primeiro ato político de relevância nacional de Severino foi a defesa da velha ordem, da hierarquia e da falta de direitos dos trabalhadores do campo no Brasil.

A Assembléia Nacional Constituinte foi o marco principal da democratização brasileira ao introduzir uma legislação inovadora em diversos campos, tais como o dos direitos sociais, o dos direitos das mulheres, da legislação sobre a organização das cidades e mesmo a tímida legislação que emergiu no Brasil democrático sobre reforma agrária. Eleito deputado federal em 1995, Severino Cavalcanti dedicou o seu primeiro ano de mandato a duas causas: uma emenda constitucional que revogava a possibilidade do aborto na única situação que a legislação brasileira o permite, que é quando a mulher foi vítima de estupro. Na defesa da gravidez oriunda da violência, Severino afirmou que a mulher nesse caso seria uma "depositária" da criança. O segundo ato de Severino foi indicar o superintendente do Incra em Pernambuco que passou a ser Roosevelt Gonçalves. Ambos os atos mostram a lógica da construção de um mandato clientelista e de defesa de interesses conservadores. Por um lado, a emenda constitucional sobre o aborto serviu para atrair o interesse de setores evangélicos dentro do congresso com o apoio dos quais Severino passou a contar desde então. A indicação do superintendente do Incra está em relação direta com a luta de Severino contra a transformação e modernização da Zona da Mata em Pernambuco. No que diz respeito a relações trabalhistas no campo, vale a pena reproduzir a afirmação do deputado sobre trabalho escravo: "Até há pouco tempo, escravo era quem vivia em sistema de escravidão, submetido a castigos e acorrentado, sem salário e despido até mesmo do direito de ir e vir. Agora, em artigo do Jornal do Brasil denunciando o trabalho escravo, a condição de trabalhador escravizado é a de alguém que não pode decidir por si próprio, não é sujeito de direitos e é tratado como mercadoria. Ora, senhoras e senhores deputados. Com esse perfil de escravo temos , infelizmente, a grande maioria do povo brasileiro que vive em condições subumanas...". Ou seja, para Severino Cavalcanti quem não está acorrentado e submetido a castigos corporais não é escravo. Temos, assim, os elementos principais da construção de um perfil de negação sistemática de direitos que constitui a biografia política do atual presidente do Congresso. O interessante, no entanto, é se perguntar como alguém com uma plataforma tão impopular pode se eleger? Na resposta a essa pergunta, uma visão sobre como gastar recursos públicos adquire relevância.

Os anos 90 geraram novos impasses e oportunidades na democracia brasileira. A década iniciou-se com a eleição de Fernando Collor para presidente e com a possibilidade de um enorme retrocesso nas conquistas da democratização e da Constituinte. A sociedade brasileira mais uma vez se mobilizou e garantiu a remoção de um presidente que se propôs a ser o predador número um do estado através de um sem número de desvios de verbas públicas. Uma das principais conseqüências do impeachment de Collor foi a CPI do orçamento e a moralização que ela propôs no processo de elaboração do orçamento público. Completam esse processo a Lei de Responsabilidade Fiscal e um crescente consenso existente em diversos setores da sociedade civil brasileira de que as emendas de parlamentares devem ser extintas. Todos esses elementos institucionais tornaram o congresso brasileiro e a produção e execução do orçamento público muito mais transparentes porque submetidas ao controle da sociedade. Desde a sua eleição como deputado federal, em 1995, Severino Cavalcanti primou por trafegar na contra-mão de todas essas medidas. Surpreendentemente, tal postura lhe permitiu uma trajetória meteórica no interior da Câmara dos Deputados. Eleito corregedor geral da Câmara dos Deputados em 1999, Severino se posicionou na discussão sobre a fixação de teto para os funcionários dos três poderes com a proposta de cada um dos poderes fixar o seu próprio teto. Severino tem também se posicionado em relação a emendas de parlamentares com a proposição de que elas não devem ser contingenciadas. Em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, ele afirma em seu informativo de atividades parlamentares que as finanças de um município não devem estar relacionadas à sua capacidade de adquirir novos financiamentos. Ele foi eleito primeiro secretário da Câmara em 2001 e segundo secretário em 2003, recebendo 22 votos a mais que o candidato a presidente, João Paulo. Em 2003, Severino já era o deputado federal que havia ocupado mais cargos consecutivamente no Parlamento brasileiro. A estratégia foi coroada com a vitória para a presidência da Câmara nessa semana. Não é difícil perceber a lógica da ascensão de Severino. A ocupação de cargos de liderança esteve ligada a um entendimento da autonomia do Parlamento enquanto instituição financiadora de despesas políticas dos deputados. Mais uma vez, não é difícil ligar tal idéia ao clientelismo do qual nos fala Vitor Nunes Leal. Uma das suas características é a despolitização da representação substituída pela distribuição de recursos públicos para serem utilizados no processo de adquirir e conservar clientelas políticas.

Fica a questão: o Brasil, nesses 25 anos de democratização, mudou ou não mudou? A resposta parece ser: a sociedade mudou, o executivo a acompanhou em alguma medida, mas o Parlamento continua a ser o bastião dos setores conservadores e clientelistas. É importante apontar que tanto Fernando Henrique como Lula acharam confortável construir as suas maiorias parlamentares e usufruir das práticas clientelistas e atrasadas vigentes no Congresso. Cabe à sociedade brasileira, que é muito melhor do que o seu Parlamento, mobilizar-se para que esse se adapte minimamente a práticas oriundas do nosso recente processo de modernização valorativa e de democratização.