Título: Legislativo não merece votos
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Desde o início do ano, várias instituições do Poder Legislativo deram mais demonstrações de uma decadência que parece não ter limites. No noticiário sobre as eleições para as Mesas Diretoras da Câmara Municipal da capital paulista, da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e da Câmara dos Deputados, o que se viu foi um festival de infidelidades partidárias e barganhas de todo tipo. Foram, entretanto, episódios de um processo mais geral e contínuo de decadência. Decadência relativamente a quê? Esse Poder é parte do que deveria ser um Estado republicano, voltado para o bem comum. É isso que está escrito com detalhes na nossa Constituição, bastando ler o seu preâmbulo e os quatro artigos do Título I (Dos Princípios Fundamentais). Entre os detalhes, diz-se que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente..."

O que se observa, entretanto, é um Poder muito voltado para si mesmo. De republicano só tem o cano que dá nos cidadãos ao não honrar o compromisso de representá-los condignamente. Esse cano também lembra aquele pelo qual entram os que depositam seus votos nas urnas ingenuamente, acreditando terem elegido gente séria que os representaria de olho no bem comum.

Ao contrário, o que predomina é a defesa do interesse próprio ou grupal de parlamentares, com o povo mantido convenientemente à distância no período do mandato, só se recorrendo a ele a cada quatro anos, para dar legitimidade formal a mais um quadriênio em que o interesse público ficará relegado ao segundo plano.

Recentemente, a Câmara dos Deputados voltou a se destacar nesse processo de decadência agravada. Grávida desse processo, gerou seu novo presidente, Severino Cavalcanti, uma figura simbólica da enganosa representatividade popular posta a serviço de interesses pessoais e fisiológicos, como a busca de remuneração e outras mordomias descomunais, inclusive para proveito da parentalha. Se isso é representatividade republicana, recorro ao dispositivo constitucional citado de que o poder do povo também poderá ser exercido diretamente. Assim, gostaria de ver como objeto de um plebiscito a permissão para contratação de parentes sem concurso público e o recente aumento da verba de gabinete dos deputados federais, de R$ 35.350 para R$ 44.187,50 por mês, entre outras barbaridades, inclusive o reajuste de 15% previsto para os servidores do Legislativo federal, que também fará essa verba subir por idêntica porcentagem (enquanto isso, o reajuste linear anual que o Executivo propôs para seus servidores foi de apenas 0,1%).

Com essas e muitas outras benesses acumuladas ao longo dos anos, a Câmara é um dos piores exemplos do mau uso do dinheiro público e da desfaçatez com que são tratados os que elegem e sustentam os deputados. Levantamento recentemente publicado (Folha de S.Paulo, 20/2) mostra que ela tem 15.666(!) funcionários na ativa, dos quais 12.087(!) sem concurso, de livre escolha dos deputados. Seu orçamento é de R$ 2,5 bilhões por ano, superior individualmente ao de oito dos Estados da Federação, e só três municípios brasileiros têm orçamentos superiores a esse valor.

E mais: para acomodar tanta gente já se discute a construção de mais um prédio, o Anexo 5(!) do principal, ao custo de R$ 30 milhões. De sua parte, o Senado Federal, também pródigo em verbas, mordomias e sinecuras, já decidiu construir o Anexo 3(!), ao custo de R$ 9,5 milhões. É o crescer por crescer, a ideologia de uma célula de câncer, nada se traduzindo em melhoria do bem comum. No plano municipal, também grassam gastos exagerados e injustificáveis.

Estou exagerando? Testemos via plebiscito a vontade do povo.

Lamentavelmente, toda a decadência dessa representatividade enganosa e dispendiosa não encontra espaço para uma reforma, pois o povo não reage e os que deveriam assumir o papel de reformadores, os próprios parlamentares, não têm o menor interesse em se fazer republicanamente reformados.

Por essas e outras razões, em particular o meu inconformismo com o sistema proporcional, e não distrital, que elege os parlamentares, na última eleição para vereadores decidi anular o meu voto e, neste espaço (Vote 99999 para vereador, 23/9/2004), procurei disseminar a idéia (ou a de votar em branco, que na urna eletrônica é mais fácil). Inspirei-me também no livro de Saramago (Ensaio sobre a Lucidez, Companhia Das Letras, 2004) que trata de um país imaginário cujos eleitores da capital votam repetidamente em branco para demonstrar insatisfação com os eleitos, a qual estendo aqui ao sistema eleitoral.

A idéia seria atingir uma proporção tal de votos nulos e brancos que evidenciasse ainda mais a falta de representatividade do Legislativo e o anseio popular por reforma. Isso na esperança de que assim os parlamentares se tocassem para uma mudança radical das instituições desse Poder e de seus maus hábitos. Evidentemente, a proposta não exclui outras iniciativas, menos ou mais contundentes.

Recebi então muitas mensagens de apoio e continuamente sou cobrado a levar o movimento adiante, estendendo-o às próximas eleições para o Legislativo, que no ano que vem incluirão as de deputados (federais e estaduais) e senadores. Assim, recomeço, por este artigo, reafirmando a proposta. Depois de publicado, será também mensagem de um blog criado por um leitor e amigo, com o título Comitê dos Cidadãos Indignados (http://flaviomusa.blog.uol.com.br) e voltado para receber e difundir manifestações sobre o tema.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela

Universidade Harvard (EUA), é pesquisador da Fipe-USP e

professor da Universidade

Presbiteriana Mackenzie. E-mail: roberto@macedo.com