Título: Gol de placa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2005, Notas e Informações, p. A3

O presidente Lula deve à absoluta inaptidão do deputado Severino Cavalcanti para manejar um dos mais triviais instrumentos da política - a hipocrisia - a sorte de ter se livrado, proveitosamente ainda por cima, da maior e mais duradoura enrascada política em que se envolveu pessoalmente desde a posse - a malograda reforma ministerial cujo caráter eleitoreiro exigia a tarefa impossível de acender um mesmo candelabro para Deus e o Diabo. A oportunidade criada pela fala do presidente da Câmara, ameaçando aliar o seu PP ao PFL se o seu afilhado Ciro Nogueira não fosse premiado incontinenti com o Ministério das Comunicações, não teria sido melhor aproveitada por Lula - para usar o tipo de metáfora preferida por ele - se a crua manifestação de chantagem tivesse sido uma "jogada ensaiada". Com um "gol de placa" o presidente da República pôde exibir-se ao País como um líder com capacidade de decisão, senso de autoridade e avesso à fisiologia como prática política - quando na verdade é o contrário disso.

Por uma mistura de apego ao poder e inapetência para exercê-lo, Lula tem sido um presidente falante e vacilante, como se a dedicação à oratória o dispensasse de fazer as coisas acontecer. Ao mesmo tempo, ele promoveu ou deixou o PT promover no Congresso um arrastão como poucos: ao inchar desbragadamente as bancadas dos partidos aliados, mantendo intacta a sua legenda, substituiu a decantada arquitetura política pela fisiologia em estado bruto.

Razão de ser do extravagante "governo de coalizão" imaginado pelo ministro da Casa Civil, José Dirceu, do PC do B ao PP, passando pelas diversas facções do enfeudado PMDB, a busca da reeleição a risco zero esbarrou numa realidade singela: sendo as ambições desatadas maiores e mais conflitantes do que os meios de satisfazê-las, mesmo com um avantajado Gabinete de 35 lugares, Lula enfim concluiu, depois de quase meio ano de elucubrações, que as contas não fechariam em hipótese alguma. Para o bem de todos e felicidade geral da Nação.

Na semana passada, eram já perceptíveis os sinais de que, mais do que esse ou aquele ministro, o que o presidente queria fritar era mesmo a reforma. O problema é que não haveria como levá-la ao fogo sem agravar ainda mais a anarquia na base governista na Câmara desde o "estouro da boiada" que levou o rei do baixo clero à presidência da Casa e, em decorrência, impôs ao Planalto derrotas em votações cruciais para o Tesouro.

Salvo pelo gongo severino, Lula ainda conseguiu fazer do limão uma limonada, ao ampliar a ilha de excelência do governo, centrada na figura do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, com a nomeação para o Planejamento do deputado Paulo Bernardo, que tem tudo para ser o homem certo para o lugar certo. É bem verdade que o senador Romero Jucá (PMDB, ex-PSDB) foi para a Previdência, no lugar do correligionário Amir Lando. Nesse caso Lula trocou seis por meia dúzia.

E agora? Terá o fiasco da reforma ensinado algo ao presidente? Para começar, ele poderia aprender a munir-se de autoridade - decidindo mais e discursando menos. Quando um presidente diz "Quem manda aqui sou eu", confessa que não sabe mandar. Lula poderia aprender também que, se é legítimo - ou mesmo necessário no sistema político brasileiro - construir alianças que não sejam meramente fisiológicas, para governar e para ganhar a eleição seguinte, tais alianças têm balizas.

A principal delas é a existência de um projeto, além da tomada do poder para nele se perpetuar, capaz de dar sentido e coesão às coligações. Esse projeto não pode se limitar ao enunciado de metas das quais não há quem discorde: crescimento econômico, emprego e combate às desigualdades. Requer uma capacidade de gestão que, quanto maior, mais o governo se fará respeitar pelos políticos; quanto menor, mais força ganharão as pressões fisiológicas.

Essa capacidade, por sua vez, depende do engenho do presidente em formar um Gabinete - e essa questão continua em pé - com nomes competentes e agregadores, porque uma coisa sem a outra ou prejudica as relações políticas do governo ou afunda a administração. Lula precisa aprender ainda que não pode permitir ao PT - nem ao ministro Dirceu, o grande derrotado neste episódio - que jogue areia numa peça-chave dessa engrenagem, a articulação política, por estar a cargo de um não-petista, o agora ressuscitado ministro Aldo Rebelo, para quem o presidente, os aliados e até a oposição só tinham elogios. Mas que ficou no "corredor da morte" enquanto a reforma rumava para o fracasso.