Título: "Eu não sou o grande inquisidor"
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2005, Especial, p. H2

Joseph Ratzinger diz e repete que não é o inquisidor, nem se sente um profeta de desgraças. Mas já foi definido como 'o homem do não' Um homem da Cúria Romana - era o braço-direito de Karol Wojtyla - e defensor dos dogmas da ortodoxia católica. Joseph Ratzinger, o novo papa, é o homem que pede aos fiéis que despertem de seu "cristianismo cansado", o cardeal capaz de dizer, no sermão da Sexta-Feira Santa: "Quanta sujeira na Igreja! E mesmo entre aqueles que, no sacerdócio, deviam pertencer completamente a Ele". Fala de Inquisidor? Ele mesmo responde: "Eu não sou o Grande Inquisidor, nem me sinto uma Cassandra (profetiza de desgraças)". O novo papa já foi definido como o "homem do não". De fato. Bento XVI nunca economizou a palavra desde que se tornou o guardião da fé católica pelas mãos do antecessor. João Paulo II o nomeou, em 1981, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício (Leia ao lado). Ratzinger explicava suas negativas como atos de bondade. Esta, disse, "implica também a capacidade de dizer não".

Assim, ele reafirmou a proibição do sacerdócio às mulheres, do casamento entre gays e de padres, aconselhou a castidade aos homossexuais, condenou a entrada da Turquia na União Européia, vetou de novo a comunhão de divorciados e combateu a clonagem humana, a camisinha e até o rock. Suas mãos esmagaram os adeptos da Teologia da Libertação, cujo principal expoente, Leonardo Boff, foi seu aluno na Universidade de Tubingen (Alemanha).

Surgida na América Latina nos anos 60, a Teologia da Libertação defendia a opção preferencial pelos pobres e políticas como a da reforma agrária. O papa considerou-a próxima do marxismo e puniu seus seguidores - Boff foi impedido de falar e escrever sobre o tema. Em visita ao Brasil em julho de 1990, Ratzinger expôs suas razões: "Tenta-se reduzir a Igreja a uma opção ideológica, a um partido político."

Das mãos de Bento XVI saiu, ainda em 2000, o documento Dominus Jesus, no qual sustentava que "só na Igreja Católica há a salvação eterna". Provocou, então, a reação do teólogo Hans Künig, que, como ele, foi professor em Tubingen: "A declaração do ex-Santo Ofício (Inquisição) é uma mescla de atraso medieval e mania de grandeza."

De uma família de agricultores, o novo papa nasceu em 16 de abril de 1927, em Marktl am Inn, na Baviera, no sul da Alemanha. Seu pai era policial e lhe serviu de professor quando a família passou por dificuldades econômicas. Eram os anos da hiperinflação da República de Weimar. Os nazistas se reorganizavam após o fracasso do putsch de Munique e a social-democracia era o principal partido alemão, seguido pelo direita cristã e pelos comunistas.

Bento XVI tinha 4 anos quando Adolf Hitler chegou ao poder. Entre as organizações criadas pelo führer estava a Hitler Jungend (Juventude Hitlerista), obrigatória para quem completava 14 anos. Ratzinger não escapou dela. Em suas memórias, contou que foi alistado ao lado do irmão Georg. Era 1941, e a Alemanha estava em guerra.

Bento XVI logo deixou a Hitler Jungend, porque começou seus estudos para padre. Em 1943, porém, com os alemães recuando em todos os fronts, foi convocado para integrar a bateria antiaérea que protegia uma fábrica. Segundo o vaticanista John Allen Jr., ele cavou ainda armadilhas antitanque entre a Áustria e a Hungria para deter os russos, desertou no fim do conflito e foi feito prisioneiro pelos americanos.

Com o fim da guerra, retomou os estudos de teologia na Escola Superior de Freising. A atual fama de dogmático e "panzerkardinal", como o definiram pelo estilo rolo-compressor, esconde um passado rebelde e libertário. "Fui um jovem selvagem", disse sobre quando se tornou consultor do cardeal Josef Frings, de Colônia. Durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), fez parte, ao lado do mesmo Künig, do grupo de teólogos chamado Konzilteenager (Adolescentes do Concílio), que defendia a renovação litúrgica.

Foi nomeado arcebispo de Munique em 1977 e, três meses depois, o papa Paulo VI fez dele cardeal. Tinha 50 anos. Em 1978, Ratzinger votou nos conclaves que tornaram Albino Luciani o papa João Paulo I e Karol Wojtyla o papa João Paulo II. Pouco antes da segunda eleição, o alemão, temendo uma avanço liberal, deu uma entrevista na qual alertou para o risco do crescimento das forças de esquerda na Igreja.

Liderou, então, um grupo de cardeais que votaram em Wojtyla, que se fez papa aproveitando a divisão entre dois candidatos italianos. João Paulo II não o esqueceu. Levou-o para a Cúria Romana, aquela mesma que d. Paulo Evaristo Ans acusava de perseguição. Wojtyla e Ratzinger reuniam-se uma vez por semana, às sextas-feiras. Costumavam almoçar juntos e discutir doutrina.

Em 1984, Ratzinger chamou o comunismo de "vergonha do nosso tempo", provocando uma crise com os países do Leste Europeu. Com a queda do regime, porém, atacou o capitalismo. "É preciso combinar a liberdade de mercado com a responsabilidade em relação ao outro." Em 2004, criticou o laicismo: "Não responde às indagações do homem."

Desde a morte de Wojtyla, Ratzinger, que se tornara em 2002 o decano dos cardeais, destacou-se. Rezou as exéquias e a missa Pro eligendo romano pontifice. Era um dos principais papabili - foi apontado anteontem pelo vaticanista Sandro Magister como o "único verdadeiro candidato", pois os liberais que se lhe opunham estavam divididos. Foram três votações. Ele entrou papa e assim saiu do conclave.

A Congregação para a Doutrina da Fé, até ontem presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger, eleito papa Bento XVI, é a versão moderna do Tribunal do Santo Ofício, a temida Inquisição. Dirigida desde 1981 por Ratzinger, foi criada para defender a Igreja das heresias e é a mais antiga das nove congregações da Cúria. Sua função é "difundir a sólida doutrina" e defender "pontos da tradição cristã que parecem estar em perigo como conseqüência das doutrinas novas não aceitáveis".

Na prática, condena livros e notifica teólogos rebeldes e alerta leigos sobre o equívoco do reconhecimento de uniões homossexuais ou do envolvimento de católicos na política. Em 1985, o teólogo brasileiro Leonardo Boff foi notificado pelo conteúdo do livro Igreja: Carisma e Poder. Ensaio de Eclesiologia Militante, e chamado a explicar-se diante de um tribunal.

Toda vez que um bispo vai a Roma para a rotineira visita ad limina ao papa, a cada cinco anos, deve passar pela Congregação para "trocar informações e preocupações recíprocas". O órgão é composto por 25 cardeais e arcebispos e conta com o auxílio de 33 funcionários.

FOGUEIRA

Durante a maior parte de sua história, o Santo Ofício usou métodos truculentos para combater o que considerou afronta à fé. O histórico de punição de hereges remonta aos primeiros séculos da Igreja. No início, contava com oposição dentro da instituição. Mas, a partir do século 12, a Igreja passou a não levantar mais a voz contra os castigos. No século 13, o primeiro tribunal foi estabelecido oficialmente por Gregório IX. Ele o confiou aos dominicanos para reprimir a heresia dos cátaros, uma seita francesa.

Aos poucos, a mira da Inquisição voltou-se também contra judeus, apóstatas, excomungados e até condenados da justiça comum. Um inquisidor era enviado para apurar a heresia e ouvia testemunhas, que tinham um papel fundamental. Os culpados ou suspeitos tinham de prometer obediência absoluta à Igreja.

Quando os métodos convencionais deixaram de surtir efeito, torturas foram incorporadas para garantir confissões e conversões. As penas, que tinham função "medicinal", iam da prisão, crucifixão, flagelação, confisco de bens e destruição de casas até a pena de morte.

Na Idade Média, foram levados à fogueira da Inquisição o filósofo Giordano Bruno, a mística e guerreira Joana d'Arc e o teólogo Jerônimo Savonarola - o astrônomo Galileu Galilei escapou do fogo, no século 17, renegando suas idéias sobre heliocentrismo. No Brasil, a Inquisição jamais estabeleceu um tribunal, mas fez mais de mil vítimas. O período de maior perseguição foi na primeira metade do século 18.

Em 1908, o Papa Pio X mudou o nome do tribunal para Sagrada Congregação do Santo Ofício. E, finalmente, em 1965, recebeu o nome atual, sob o pontificado de Paulo VI.