Título: O dia em que conheci Ratzinger
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2005, Especial, p. H2

Jornalista que encontrou o novo papa por acaso na Áustria, em 1996, conta que se surpreendeu com sua amabilidade No período em que fui correspondente internacional da revista Veja, baseado em Roma, entre os anos de 1987 e 1990, tentei sem sucesso um encontro com o então cardeal Joseph Ratzinger. Enviei a ele várias cartas, uma delas levada por d. Eugênio Salles, cardeal do Rio, o prelado brasileiro de maior prestígio na Cúria Romana. Ratzinger comandava a Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, e lutava contra a corrente de esquerda que dominava fração expressiva da Igreja Católica no Brasil, inspirada na Teologia da Libertação, cujo líder intelectual era o frei Leonardo Boff, de Petrópolis. Minhas cartas jamais tiveram resposta. Era como se não tivessem chegado ao destino. Voltei ao Brasil, mudei de área no jornalismo. Dediquei-me à gastronomia e passei a dirigir a revista Gula. No final de 1996, fui à Áustria a trabalho. Ao passar pelo Monastério de Maulbronn, em Baden, perto de Viena, parei para uma visita. Já ouvira falar na suntuosidade arquitetônica do lugar. Construído na Idade Média, o monastério se encontra exemplarmente preservado e foi considerado pela Unesco patrimônio da humanidade. Ao transpor sua muralha, deparei-me com o outrora arredio cardeal Ratzinger, acompanhado de meia dúzia de freiras. Vestia o clergyman, contemplava e explicava para as religiosas aquela maravilha da arte. Não tive dúvidas: fui ao seu encontro e puxei conversa. Antes, porém, pedi ao fotógrafo Gladstone Campos, que me acompanhava, que documentasse o encontro.

Evidentemente, a conversa foi respeitosa. Falamos em italiano - o dele é impecável, ressalvado o acento alemão. Mas reclamei com educação da falta de resposta às minhas cartas. O cardeal explicou que, por razões políticas, não lhe convinha receber a imprensa. Temia que alguma palavra pudesse ser mal interpretada e prejudicasse o trabalho da Congregação para a Doutrina da Fé. Referia-se à desmontagem da Teologia da Libertação, que operava com sucesso. Surpreendeu-me por se referir à Veja com naturalidade e revelar conhecer alguns jornais brasileiros, que lhe chegavam à mesa na forma de recortes. A seguir, perguntou onde eu estava trabalhando, mas desconversei. Fiquei constrangido. Afinal, São Tomás de Aquino classificou a gula entre os pecados capitais. O fotógrafo Gladstone, que ouvia o diálogo, começou a rir.

Ratzinger falava com tranqüilidade. A voz era baixa e mansa. Mostrava-se simpático e agradável. Em nenhum momento me fez sentir diante do prelado que todos afirmavam ser um homem taciturno e implacável, inclusive eu, antes de conhecê-lo pessoalmente. Então, perguntou-me se eu era católico. Respondi que sim. Ratzinger olhou para um dos lados do monastério e, se ainda consigo lembrar, falou assim: "Então o senhor vai entender melhor este monumento que influenciou a arquitetura gótica mundial e inspirou tantas manifestações de espiritualidade".

Ao nos despedirmos, afirmou que tinha grande apreço pelo Brasil, o país natal de seus amigos d. Eugênio e d. Lucas Moreira Neves, o falecido cardeal da Bahia. Apertou minha mão, abanou para o fotógrafo Gladstone e voltou a conversar animadamente com as freiras. Quando recebi a notícia de sua eleição, lembrei-me do encontro com o novo papa. Acredito que Ratzinger, agora Bento XVI, não mudará a Igreja. Preservará as linhas básicas do pontificado anterior, do qual foi coadjuvante. Dizia-se que ele e João Paulo II eram "colegas intelectuais", por terem os mesmos pontos de vista. Sendo homem inteligente e culto, além de grande teólogo, deverá ser um bom papa