Título: Feita a emenda, faltou o soneto
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2005, Nacional, p. A6

Concretizadas as mudanças no ministério tal como auxiliares e aliados do presidente da República informavam que seriam feitas, com certeza absoluta teria sido muito pior. O noticiário das novidades dividiria espaço com questionamentos sobre os critérios adotados para as escolhas e com o revirar das vidas pregressas nem sempre abonadoras de alguns dos escolhidos. Isso para não falar na altíssima possibilidade de o deputado Severino Cavalcanti desconectar-se de vez da realidade e perder-se em seus delírios de poder ante a prova de que, junto com a presidência da Câmara, conquistara também a chefia da Nação, quiçá do universo.

Isso não significa, porém, que o acerto da emenda tenha conferido virtuose ao soneto. Este ainda é uma obra em aberto e, tomando por base a avaliação do próprio governo, de má qualidade.

Conforme tese difundida intensamente nos últimos meses por auxiliares e aliados do presidente da República, reformar o ministério era preciso para atender à necessidade de produzir resultados eficazes na administração e na política, com vistas a fortalecer o governo na disputa eleitoral de 2006.

Pois bem, a suspensão da reforma não atendeu a nenhuma das duas premências. Só não se poder dizer que as coisas voltaram à estaca zero porque o cenário piorou bem desde o início desse debate, lá se vão cinco meses.

Entronizou-se um desenfreado na presidência da Câmara, instituiu-se o salve-se quem puder na base parlamentar governista, inaugurou-se o sistema da fritura ministerial participativa e instalou-se a desmoralização coletiva na qual todos, governo e oposição, expuseram sem resquício de constrangimento as respectivas torpezas d¿alma à depreciação pública.

Tudo isso continua em pleno vigor e, se não se pode atribuir responsabilidade exclusiva ao presidente da República, muito menos é justo fazer de Severino Cavalcanti a razão de todas as mazelas. Até por ausência de estofo para ser causa, Severino é mera conseqüência. A atual oposição, auto-referenciada como responsável, altiva e diferente de seus antecessores no posto, em determinado momento viu-se no direito de abster-se de freios e arriscar graçolas que de engraçadas só tem mesmo a falta de jeito para as artes da imitação.

Mas a ela sempre se pode conceder o beneplácito da escolha de se comportar bem ou mal, pois não recebeu da maioria a delegação para comandar o processo, seja ele político ou administrativo.

Daí a cobrança inevitavelmente recair sobre quem foi escolhido para decidir e conduzir. E é desta tarefa que o governo, na figura do presidente Luiz Inácio da Silva, abriu mão de se encarregar no tocante à chamada reforma ministerial.

O desfecho não precisaria ter sido a suspensão da reforma se desde o início o presidente da República tivesse o comando dos acontecimentos, a começar pela clareza do objetivo. Por razões que ninguém sabe ao certo quais são, tantas as versões disseminadas, Lula deixou as rédeas das mudanças à deriva, passando de mão em mão até que alguns aventureiros delas lançaram mão e impuseram a ele uma rendição.

Pela negativa, mas uma rendição na medida em que não pôde fazer aquilo que seus auxiliares e aliados, sem serem desautorizados, alegavam ser imprescindível fazer. Ou seja, o governo desistiu, pelo menos temporariamente, de investir num projeto concebido por ele mesmo como de melhoria administrativa e política.

O fato de ter vencido uma queda-de-braço com o presidente da Câmara não desobriga o presidente da República de se empenhar na batalha pelo ganho de eficácia governamental. Ao contrário.

Sendo ele o mandatário, o dono da delegação popular majoritária no plano nacional, tem necessariamente a obrigação de comandar as grandes questões, sabendo contornar suas dificuldades, neutralizando democrática, legal e politicamente os adversários, e não se deixando paralisar por eles ou reagindo com emocionalismo - tanto faz se de natureza terna ou raivosa - aos obstáculos.

Em favor do presidente apresentam-se agora alguns argumentos de que ele mesmo jamais disse ao País se faria, como faria ou quando faria as mudanças no ministério.

Mas seus auxiliares e aliados o fizeram por ele e, ainda que tenham inventado tudo, mereceriam ao menos reprimenda por terem exposto aquele a quem devem por dever de ofício preservar.

Um exemplo: o afilhado do presidente da Câmara, dizia-se, estava praticamente nomeado ministro e perdeu o posto por causa da impertinência do padrinho.

A ser real a versão, se Severino não tivesse extrapolado, o rapaz seria hoje titular de uma pasta por escolha explícita dele e não do presidente da República, já que as pressões anteriores não mereceram um paradeiro, foram absorvidas como naturais.

Ou não: será que o acesso de Severino Cavalcanti foi um ato de desespero ante a evidência do fracasso?

Pois esse tipo de dúvida não surgiria nem prosperariam determinadas performances informativas caso o presidente da República tomasse por hábito estabelecer um diálogo mais sério, transparente e consistente com a sociedade, em substituição aos discursos altissonantes, cujos conteúdos, por vagos, acabam dirigidos a todo mundo e ninguém.