Título: Apelo à auto-ajuda
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/03/2005, Notas e Informações, p. A3

Na inauguração da primeira usina de biodiesel do Brasil em Cássia (MG), na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve um arroubo de fantasia e ufanismo utópicos de fazer o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) corar de pudor e modéstia: ele atribuiu ao novo combustível potencial para substituir o petróleo, cuja escassez preocupa a humanidade, desafia a elite científica internacional e incomoda os governantes das potências mundiais.

Segundo Lula, o biodiesel, óleo de origem vegetal utilizado em motores de combustão, cuja produção será limitada pela quantidade de terras que poderão receber as sementes de mamona e girassol, provocará um abalo geopolítico maior que o produzido pela fonte finita de energia que ele pretende substituir. Na profecia presidencial, "não vamos mais ter carro movido a gasolina, mas carros andando com biodiesel".

O óleo, produzido a partir de uma fonte plantada e colhida, ou seja, renovável, produzirá o efeito de uma bomba de hidrogênio no mercado volátil da energia e livrará o País da dependência energética de hoje, além de virar o planeta inteiro de pernas para o ar. Pois, com isso, "o petróleo vai perder a importância e não vai aumentar do jeito que está aumentando agora, a US$ 60 o barril".

Sem atentar para a evidência de que o biodiesel anunciado será misturado ao óleo derivado de petróleo na proporção de apenas 2% e que isso representará uma economia modesta, mas razoável, de 800 milhões de litros a serem poupados nos 40 bilhões de diesel importados anualmente, Lula fez uma profecia digna de competir com a ficção de Júlio Verne. Com a diferença de que as descritas por este estão se cumprindo, enquanto a dele não se concretizará com facilidade.

O Programa Nacional de Biodiesel instalará, ao todo, 24 refinarias de biodiesel no Nordeste e Centro-Oeste. A primeira, esta inaugurada em Minas, retira 60 mil litros de óleo de produtos fornecidos por uma cooperativa de 200 pequenos produtores de assentamentos de reforma agrária. Quantas como ela serão necessárias para substituir os 84,3 milhões de barris (13 bilhões e 400 milhões de litros) de petróleo consumidos por dia no mundo inteiro? A resposta aproximada seria 223.377, quase 10 mil vezes o número de destilarias de biodiesel projetadas pelo governo.

"Estamos dando um sinal ao mundo de que, num futuro próximo, o petróleo não será motivo para guerra ou que um país consumidor invada um país produtor", insinuou o presidente, referindo-se, sem muita sutileza, à invasão do Iraque pela maior potência política, militar, econômica e tecnológica do mundo contemporâneo. Para garantir a consecução dessa bravata, digna de figurar no clássico da comédia cinematográfica

O rato que ruge, o chefe do governo brasileiro conta com a reviravolta do balanço de poder político internacional a ser executada pelo novo combustível. Nessa guerra de mamonas e girassóis contra poços de petróleo, Sua Excelência conta com aliados inexoráveis. "Temos terra boa, sol farto, fotossíntese e não temos terremoto, furacão e neve."

Por mais caprichosos que sejam os desígnios da meteorologia, o diagnóstico de Lula poderia até se aproximar de algum grau de realismo: de fato, os índices de insolação e a pouca mobilidade das camadas geológicas em nosso território são invejáveis. Mas historicamente está provado que essa condição natural positiva não tem tornado mais ou menos rica esta ou aquela nação. A Finlândia, por exemplo, tem parte de seu território além do Círculo Polar Ártico, passando, por isso, metade do ano sem Sol, e é o primeiro país do mundo em termos de nível de vida.

Convencido de que Pero Vaz de Caminha tinha razão ao escrever que aqui "em se plantando tudo dá", Lula se inspirou no livro A semente da vitória, de Nuno Cobra, para embasar essa fé: "Por pior que esteja sua vida, diga que tudo vai bem. Por mais que você não goste de sua aparência, afirme-se bonito. Por mais pobre que você seja, diga que é próspero." Países antes mais atrasados que o Brasil, caso dos tigres asiáticos, se deram melhor investindo em qualidade de gestão e educação básica para o povo. O Japão, onde neva sobre solos insuficientes para aproveitar a fotossíntese, decidiu apostar tudo em seu melhor insumo: o japonês. Priorizar boa administração, instrução e saúde públicas certamente seria mais eficaz para melhorar o padrão de vida do brasileiro que apelar para a auto-ajuda.