Título: ONU acusa Justiça brasileira de nepotismo e de excluir pobres
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/03/2005, Nacional, p. A12

Obtido com exclusividade pelo Estado, documento enumera deficiências do Judiciário e propõe 22 ações para aprimorá-lo A Justiça brasileira é lenta, pouco acessível à população mais carente e apresenta até mesmo "certa tendência ao nepotismo". Essas são algumas das conclusões de uma avaliação preparada pelo relator da ONU (Organização das Nações Unidas) para a independência do Poder Judiciário, o argentino Leandro Despouy. O documento crítico, obtido com exclusividade pelo Estado, é o primeiro raio X feito por um especialista da ONU sobre a Justiça brasileira e aponta suas deficiências, além de indicar 22 ações sobre como aprimorá-la. Para Despouy, a reforma do Judiciário, aprovada em novembro, não será suficiente para tratar de todos os problemas do sistema brasileiro.

O documento é a versão preliminar preparada pelo relator da ONU e não conta com os comentários feitos pelo governo brasileiro e que seriam incluídos no relatório final. O documento definitivo somente será divulgado pela ONU nos próximos dias, mas as principais conclusões serão mantidas. Na sexta-feira, na sede das Nações Unidas, em Genebra, Despouy apresentará suas conclusões sobre o Brasil aos demais países da Comissão de Direitos Humanos da ONU. O governo promete enviar um representante de Brasília para responder às críticas do relator.

Segundo a avaliação, o principal problema no Brasil é a falta de acesso da população marginalizada à Justiça. "Grande parte da população brasileira, por razões sociais, econômicas, culturais ou de exclusão, está impedida de ter acesso à prestação judicial ou a recebem de maneira discriminatória", afirma o documento. "Em uma sociedade com tantas desigualdades, a população mais pobre não tem informação suficiente sobre como exercer seus direitos através do sistema judicial", completa.

De acordo com a análise, o problema é ainda maior quando se trata de grupos vulneráveis, como crianças, indígenas, homossexuais e afro-brasileiros. Preocupado com a impunidade relacionada à violência contra mulher, Despouy acredita que tais atos não são tratados de forma adequada pela Justiça. "Em muitos âmbitos, domina a atitude machista que tende a culpabilizar vítimas desses delitos", diz o documento. Quanto às crianças, Despouy pede a criação de tribunais penais especializados para julgar crimes contra esse grupo.

A falta de acesso à Justiça parece ser ainda mais grave quando se trata de representantes de movimentos sociais, como trabalhadores sem-terra e ambientalistas. Para Despouy, esses grupos são "revitimalizados pelo sistema judicial que reproduz na administração da justiça a discriminação presente na sociedade". Segundo ele, quando esses grupos se apresentam como vítimas, seus processos "levam décadas sem chegar a uma sentença". No Pará, dos 1,2 mil casos de trabalhadores rurais assassinados entre 1985 e 2001, só 85 tiveram suas sentenças julgadas em caráter definitivo. Segundo Despouy, isso significa que 95% dos casos ficaram sem uma resposta judicial.

Enquanto haveria uma "tendência à criminalização dos movimentos sociais", Despouy lembra que muitos ativistas estão sendo processados. Só no Rio Grande do Sul, quase 100 trabalhadores sem-terra estão nessa situação. A impunidade expõe magistrados, advogados e defensores de direitos humanos a ameaças de morte. Por isso, o especialista sugere que defensores de direitos humanos visitem o Brasil, além do relator da ONU sobre racismo.

Outra característica do Judiciário criticado pelo relator argentino é a morosidade do sistema legal brasileiro, que contribui para a impunidade. Essa lentidão o tornaria ineficaz e ainda afeta o direito da população a se servir da Justiça. "As sentenças levam anos para serem dadas, o que provoca incertezas tanto no âmbito civil como penal e, em muitos casos, gera impunidade", afirma o documento.

Citando o próprio Ministério da Justiça, Despouy lembra que 17,3 milhões de processos foram iniciados no País em 2003. Isso significaria um processo para cada dez habitantes. Para o relator, esse "índice descomunal coloca em evidência o gravíssimo congestionamento do Poder Judicial". Só em São Paulo há em média de 8 mil a 10 mil processos por juiz e, em muitos lugares, há uma "notória escassez de meios", falta de funcionários e de recursos tecnológicos para que o Judiciário possa desempenhar suas funções de forma eficaz.

Despouy conclui que a morosidade e a falta de acesso à Justiça, além de casos de corrupção, são os principais elementos que geram um imagem pouco positiva da Justiça perante a sociedade. Para mudar essa tendência, não apenas uma lista de ações é apresentada, mas o relator sugere a aproximação do Poder Judiciário com a população, como no caso de experiências como o Centro de Integração Cidadã, em São Paulo.