Título: Discussão arrevesada
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/04/2005, Nacional, p. A6

Medidas provisórias não precisam ser devolvidas, basta que sejam recusadas O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, bem poderia economizar espalhafato no tocante ao instituto das medidas provisórias - tema de sua mais recente performance -, bastando para isso ler a Constituição.

Na mesma linha, o novo séquito de admiradores de Severino, composto por parlamentares da oposição mais interessados nos problemas que ele pode criar ao presidente da República do que nos atributos democráticos atribuídos por eles ao presidente da Câmara, também as referidas excelências poderiam abdicar da pirotecnia.

Lida e aplicada a Constituição, nem Severino nem seus súditos precisariam perder tempo ameaçando devolver ao Executivo medidas provisórias consideradas inconstitucionais.

A bravata é desnecessária porque a lei permite ao Congresso recusar a tramitação de MPs que, a juízo de uma comissão especial de deputados e senadores, não atendam aos quesitos de urgência e relevância exigidos, também pela Constituição, para a edição de uma medida provisória.

O drama, portanto, é inexistente, visa apenas a fazer marola política e servir aos que se aproveitam da precariedade intelectual do presidente da Câmara para incentivá-lo a dar demonstrações de poder e independência à deriva, de forma a criar atritos com o Palácio do Planalto.

São, na realidade, uns amigos-da-onça para Severino Cavalcanti; no primeiro gesto dele de amabilidade em direção ao presidente Luiz Inácio da Silva deixam de lado toda a alegada admiração e voltam ao ataque.

Como de resto já tiveram oportunidade de fazer neste curto período da era severina, quando os atos do presidente da Câmara não atendiam aos seus interesses.

Mas, de volta às medidas provisórias, que são o objeto da discussão (torta) em curso, não bastasse a nitidez dos mandamentos constitucionais, há também, pertíssimo de Severino Cavalcanti, uma proposta para organizar o rito das MPs.

É de autoria do vice-presidente da Câmara, deputado José Thomaz Nonô, a sugestão de que se crie uma comissão permanente mista, composta por representantes da Câmara e do Senado, para, ao molde da Comissão de Constituição e Justiça, examinar todas as medidas provisórias enviadas pelo Executivo.

As não urgentes e/ou relevantes simplesmente não seriam admitidas para tramitação.

Nonô é contra os queixumes e apelos ao Planalto no sentido da redução da edição de MPs simplesmente porque os considera inúteis.

"Nenhum governo que tenha um instrumento autoritário nas mãos vai deixar de usá-lo apenas por força de apelos. Afinal, nada melhor do que ser Executivo e Legislativo ao mesmo tempo", argumentava o deputado no ano passado, quando apresentou a proposta, pelo visto ignorada.

A rigor, nem seria necessário criar uma nova comissão nem deveria haver essa confusão que cada vez mais freqüentemente toma conta do tema medidas provisórias.

Pela quintilionésima vez, vale apontar uma claríssima relação de prerrogativas: ao Executivo cabe editar as MPs e ao Legislativo cumpre examinar sua relevância e/ou urgência, admitir ou não a tramitação e depois aprovar ou rejeitar.

Por acaso trata-se de um roteiro complicado, misterioso ou mesmo exposto em sânscrito?

Óbvio que não. No entanto, é solenemente ignorado pelos parlamentares que continuam debatendo-se em torno do inexistente. Os motivos podem ser variados.

Talvez tenham preguiça de fazer o serviço que lhes cabe, talvez falte coragem aos da chamada base governista para recusar MPs enviadas pelo Executivo ou quem sabe há interesse em manter o assunto em pauta na agenda do conflito eterno, da polêmica mais fácil.

Como se viu pela inércia diante do que diz a lei e até da proposta do deputado Nonô, nessa questão o Congresso adora reclamar, mas não mexe uma palha no sentido de providenciar a mudança com uma ação coletiva referida nas circunstâncias do Parlamento e não nas conveniências do Planalto.

A maneira mais eficaz de fazer isso seria a recusa sistemática das medidas não urgentes nem relevantes. Rejeitadas uma, duas, três MPs, evidentemente que o Poder Executivo tomaria mais cuidado com a quantidade e a qualidade das medidas. Até para evitar ser exposto a derrotas políticas constantes.