Título: Quem planta colhe
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/04/2005, Economia, p. B2

A Argentina acaba de oficializar seu apoio ao candidato uruguaio, embaixador Carlos Pérez del Castillo, à direção geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Del Castillo é aquele mesmo que o Itamaraty considerara defensor dos países ricos em detrimento dos interesses dos países pobres. Isso significa que a Argentina rejeitou o candidato brasileiro, embaixador Luís Felipe Seixas Corrêa.

Respostas assim são as frutas que o Brasil vai colhendo pelo cultivo de mudas submetidas a enxertos geopolíticos, pelas concessões excessivas que tem feito à Argentina e por relegar a segundo plano a diplomacia comercial.

Antes de prosseguir, é bom reconhecer que o presidente Lula não gosta do varejo político. Quando parlamentar, desdenhou a rotina do Congresso, de onde saiu afirmando que lá vicejavam 300 picaretas. Decididamente, o presidente Lula não se sente atraído pelo jogo miúdo da política local, tão carregado de toma-lá, dá-cá, de pequenas e grandes traições e de conchavos - até mesmo nos banheiros, uso que o novo presidente da Câmara vai consagrando.

Lula formou-se nas lutas sindicais, nas assembléias que lotaram o estádio de Vila Euclides, em Santo André, nas greves dos metalúrgicos e no movimento de massas. É dessa energia que gosta e nela é que se sente à vontade para desenvolver seu grande carisma.

A contrapartida dessa inclinação natural é sua atuação no cenário mundial. Lá fora, o presidente Lula é visto com admiração e curiosidade por ser o retirante que deu certo. É a demonstração viva de uma tese acalentada pelos senhores do mundo: a de que a democracia abre oportunidades incomensuráveis para todos, até para aqueles que vinham sendo apontados (pelas esquerdas) como os "excluídos do sistema global".

O presidente Lula adora desempenhar esse papel e fica à vontade quando tricoteia com chefes de Estado. Sob a inspiração dos atuais dirigentes do Itamaraty e do seu secretário especial de Relações Internacionais, curte o sonho de transformar o Brasil em líder regional, não apenas do Cone Sul, mas de toda a América Latina. Enfim, quem não consegue unir nem sequer o PT em torno da escolha do presidente da Câmara acalenta o projeto de ser Simón Bolívar.

Para levar adiante esse projeto geopolítico, o governo Lula tem deixado para segundo plano as negociações comerciais. Em vez de dar prioridade ao acesso aos mercados dos países ricos, que são os que de fato compram, a área externa deste governo vem preferindo a costura de alianças com países pobres, com o objetivo de somar poder de barganha supostamente para ser exercido no jogo duro imposto pelas grandes potências.

Em nome da construção dessa hegemonia, o governo Lula tem tolerado um desaforo atrás do outro do presidente argentino, Néstor Kirchner: imposição de barreiras unilaterais às importações de produtos brasileiros, ataques à Petrobrás, exigências descabidas nas negociações comerciais com terceiros países, reivindicações de salvaguardas automáticas, oposição à candidatura do Brasil a assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas e, agora, a adesão à candidatura uruguaia à OMC.

Qualquer um sabe que não há razão alguma para que o Mercosul apresente dois candidatos, um brasileiro e um uruguaio. Essa dupla candidatura comprova a falta de unidade do bloco e, obviamente, a falta de uma liderança. O candidato uruguaio foi aquele que, em Cancún, quando se discutia o futuro da Rodada de Doha, redigiu o documento que sacramentou o jogo dos países ricos. A decisão da Argentina mostra que o Brasil vai se isolando até mesmo no Mercosul.