Título: Nos meandros dos herdeiros de Pedro
Autor: Dom Paulo Evaristo Arns
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Aliás, p. J4-J5

Renúncia papal pode ser humanamente plausível e eclesialmente aceitável

Entre preces e incertezas, os católicos e mesmo o mundo todo, por causa do caráter público de sua figura e por sua estatura internacional, acompanharam apreensivos a enfermidade que forçou a hospitalização do papa na Policlínica Gemelli, em Roma. Pela primeira vez em 26 anos, João Paulo II deixou de oficiar, na Basílica de São Pedro, as cerimônias da solene abertura da quaresma. Com sua limitação, que o obriga a usar cadeira de rodas e a uma crescente dificuldade para falar, a imprensa passou a veicular, com insistência, a hipótese da renúncia do papa, sempre desmentida pelo Vaticano. Cardeais importantes como Carlo Martini, de Milão, ou Aloísio Lorscheider, de Aparecida do Norte, ambos eméritos, exprimiram, no passado, a opinião de que a renúncia seria humanamente plausível e eclesialmente aceitável. O teólogo Hans Küng acaba de fazer um apelo público para que o papa renuncie, segundo reza o direito canônico, quando se trata do "bem e da necessidade da Igreja".

Visivelmente, o papa encontra dificuldades crescentes no cumprimento de suas responsabilidades pastorais e de governo, por causa de achaques crônicos, como o mal de Parkinson, ou por enfermidades supervenientes, como a forte gripe que o abateu. No caso dos bispos, o Concílio Vaticano II (1962-1965) já havia dirimido a questão. Preocupados com a vida de dioceses cujos pastores, por causa da idade ou de uma enfermidade, não eram mais capazes de governar, os padres conciliares estabeleceram que estes deveriam apresentar ao papa a renúncia, abrindo caminho para a nomeação de novo bispo diocesano, permanecendo o anterior como emérito.

O Motu Próprio Ecclesiae Sanctae (I, 11) de Paulo VI estabeleceu a idade-limite de 75 anos para a renúncia dos bispos. A norma foi confirmada pelo Código de Direito Canônico, parágrafo primeiro do artigo 401. O cânone comporta um outro parágrafo em que recomenda a renúncia em casos de doença ou incapacitação. Paulo VI, ao reformar a Cúria Romana, decidiu que cardeais, prefeitos dos Dicastérios, congregações romanas ou demais ofícios na Cúria, deveriam apresentar renúncia aos 75 anos. Os cardeais continuariam, entretanto, gozando até os 80 anos do direito de eleger novo papa.

Por que as mesmas normas não se aplicariam ao papa? Os bispos não ousaram estabelecer esta determinação no Concílio. Além disso, para o caso do papa falta a "competente Autoridade" que pudesse solicitar ou aceitar a renúncia. O Código de Direito Canônico prevê a possibilidade jurídica de renúncia. Ela não precisa ser aceita por ninguém para ter validade, legisla o parágrafo segundo do artigo 332.

O que se exige é que o papa renuncie livremente, e não por imposição, e manifeste sua decisão de modo claro e público. Não há precedente moderno, nem no caso de Leão XIII, debilitado aos 93 anos de pontificado (1878-1903), nem no de Pio XII, cujos problemas de saúde se agravaram em 1954 até sua morte em 1958, causando paralisia no governo da Igreja.

Paulo VI pensou seriamente em renunciar. Já com problemas de saúde, decidiu ir ao Congresso Eucarístico de Filadélfia, nos Estados Unidos, por ocasião do bicentenário da independência norte-americana, em 1976. Depois de consultarem seu médico, Mario Fontana, seu secretário particular Pasquale Macchi e o secretário de Estado, Giovanni Benelli, desaconselharam-lhe a viagem, alegando problemas políticos, mas por fim admitindo que sua saúde não suportaria um trajeto tão longo em pleno verão norte-americano. Diante disso, Paulo VI resolveu renunciar. Foi a duras penas que conseguiram demovê-lo da decisão.

Na prática, pois, é possível a renúncia, embora seja difícil prever as conseqüências sobre a Igreja e o papa a ser eleito. Sobre ele pesaria a sombra do precedente pontificado e o pudor, se não o temor, de imprimir novo rumo à Igreja, em contraste com as anteriores diretrizes pastorais ou disciplinares. Poderia formar-se partido contrário a ele, recorrendo aos atos e autoridade do pontífice ainda vivo.

Isso não impediu que, no passado, papas tenham sido depostos pelo poder civil ou por disputas eclesiásticas, como Silvério (537), Martinho I (654), Romano (897), João XII (963), Bento V (963), Leão VIII (964) e Bento IX, por duas vezes (1044 e 1048). Outros foram afastados por concílios, como o de Constança (1414), quando havia três papas disputando, simultaneamente, a legitimidade para dirigir a Igreja. Da lista dos papas que renunciaram é sempre lembrado São Celestino V, que preferiu retornar à vida monástica, em 1294. Não foi o único, pois haviam abdicado Clemente I, em 97; Ponziano, em 235; Bento IX em 1045; e Gregório XII, em 1415.

Uma renúncia, pois, de João Paulo II nada teria contra a tradição ou as normas canônicas e poderia abrir um precedente moderno, até mesmo salutar, de um papa não prosseguir governando para além de suas forças. Como não há vácuo de poder, a preocupação é que as funções e deveres do papa sejam assumidos cada vez mais pela Cúria Romana, deputada a auxiliá-lo, mas não a substituí-lo nas decisões e no governo da Igreja.

Sobrevindo um agravamento do estado de saúde ou sofrendo um AVC, por exemplo, quem estaria habilitado a declarar sua incapacidade e a convocar um conclave? É um caso não previsto pelo direito canônico que supõe sempre que seja o papa quem tome a decisão da renúncia. O Código de Direito Canônico deixa pairar grande incerteza no caso de um acidente grave de saúde que incapacite o papa, física ou mentalmente, impedindo-o de tomar qualquer decisão, até mesmo a da renúncia.

Há, na Igreja, o compreensível pudor de tratar do assunto, no momento em que se ora pela saúde do papa. Resta o lado humano da questão, pois esta e outras situações semelhantes acabam impondo a uma pessoa já debilitada e diminuída no seu vigor o ônus de suportar o árduo ofício de governar a diocese de Roma e a Igreja universal, cuidando pastoralmente de seus rumos e assumindo ainda, no cenário internacional, as funções de cabeça de um pequeno mas ativo Estado, o Vaticano.