Título: O papa é um homem de coração dividido
Autor: Dom Paulo Evaristo Arns
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Aliás, p. J4-J5

Para o cardeal que enfrentou fardas e batinas, João Paulo II sempre se debateu entre o sopro renovador da Igreja e a redoma conservadora em que vive, padece e definha

Não foi com hesitação, nem com meias-palavras, que d. Paulo Evaristo Arns ponderou na última quinta-feira: seria hora de João Paulo II renunciar. Arcebispo emérito de São Paulo, feito cardeal sob Paulo VI e praticamente com a mesma idade de Karol Wojtyla (tem 83 anos, um a menos que o polonês), sustenta a afirmação que pode ser interpretada como um tanto dura com a mesma tranqüilidade de quando diz: "Sempre contei tudo para o papa." E completa com voz firme: "Tudo!" O mundo cristão sabe que suas relações com o Vaticano nem sempre foram fáceis, mas, na condição de cardeal, posição que lhe confere deveres de assessor do Santo Padre, jamais deixou de usar de franqueza com seus chefes. Daí sentir-se à vontade para explicar que a realidade está complexa demais para a saúde debilitada do pontífice. "Quando o papa se ausenta, a Cúria Romana decide", resumiu no dia em que João Paulo II deixou a Policlínica Gemelli, em Roma, a bordo do papamóvel. Nesta entrevista exclusiva para o Aliás, d. Paulo comenta fatos marcantes e inéditos - destaque para o contato pessoal que teve com os três últimos papas. Aparentando disposição física e com boa memória, falou sem reservas em uma sala do Convento de São Francisco, no centro de São Paulo, onde morou na mocidade e de onde saiu para uma carreira religiosa singular. "Olhe, a janela do meu quarto era aquela", fez questão de apontar. Todas as quintas-feiras ele vai ao convento para atender quem o procura - de mendigos a personalidades da República.

Aposentado da arquidiocese e impedido pela idade de participar do Colégio de Cardeais que irá escolher o próximo papa, repassa as relações do atual pontífice com a hierarquia da Igreja, as interferências no relacionamento de Roma com o clero brasileiro e, num atalho da conversa, revela que está descontente com o presidente Lula. Explica que o sindicalista amigo pouco vem fazendo para resolver a concentração de riqueza do país, fenômeno que d. Paulo batiza com uma única palavra: escândalo. Não obstante, o humor está em alta. Livre das pressões do passado, o cardeal que enfrentou fardas desgovernadas e batinas conservadoras hoje se dedica aos pobres, velhos, incapacitados e jovens carentes de amparo. Ri ao lembrar que já o alistaram como papabile. "Eu, papa? Isso era coisa dos corintianos", comenta numa alusão ao time do coração. "Jamais tive chance." Também não teve chance como Nobel da Paz, embora oficialmente indicado. Seus trunfos se medem nos sete programas pastorais que implantou numa das maiores arquidioceses do mundo, na criação de 43 paróquias e no talento para multiplicar comunidades de base - mais de mil. Hoje toca a vida com simplicidade, fiel ao lema que abraçou. Em bom latim, ex spe in spem. Numa tradução livre, "de esperança em esperança".

Considerando o estado de saúde do papa, o senhor acha que ele deveria renunciar?

Colegas bispos fazem essa consideração comigo. Sim, seria hora de o papa renunciar para que a Igreja possa acompanhar o movimento da História, ou seja, para que possa acompanhar este momento crítico que vivemos, de grande responsabilidade para todas as nações do Oriente e do Ocidente.

Nos encontros que o senhor teve com João Paulo II, especialmente os mais recentes, ele comentou algo nesse sentido?

Toquei no assunto com ele, de maneira muito simples. Disse que ele estava viajando muito, mas daquela maneira, com dificuldades de locomoção. Indiretamente eu lhe perguntei se não era demais. E ele respondeu assim: "Paulo, daqui para cima (apontando do peito em direção à cabeça) eu me sinto inteiro. Sou a mesma pessoa que entrou aqui para ser pontífice. Não vejo motivo para renunciar porque a cabeça, o coração, meus órgãos estão bem". Depois deste encontro, os males foram se agravando, males que o atormentaram por toda a vida, desde o atentado que sofreu no Vaticano, em 1981. Penso que cada pessoa tem a consciência da sua responsabilidade. E consciência tem a ver com espírito de fé, inteligência e compreensão das coisas que se passam em nosso entorno. Se ele acha que as coisas ainda não estão em ordem, então é provável que queira continuar e dar um tempo para que o nome do novo papa brote no coração dos cardeais. Quanto a mim, estou com 83 anos, não posso mais votar no seu sucessor (o limite de idade dos cardeais é de 80 anos).

Em que situação o senhor teve esse diálogo com o papa?

Foi há cinco, seis anos, quando eu ainda ia a Roma regularmente. O papa tinha alguma dificuldade de andar, mas nós caminhamos juntos pelo corredor. Fomos conversando em alemão. Ele fala alemão claramente, e eu também, pois esta é a minha segunda língua, aprendida em criança com minha família. E neste convento franciscano me ensinaram o alemão correto, que uso em conferências.

Como foi seu relacionamento com Karol Wojtyla?

Estivemos juntos várias vezes, porque, quando vai a Roma, um cardeal tem de procurar o chefe. E assim fiz. Em certas ocasiões, eu saía daqui pensando que o papa não deveria estar muito contente comigo. Mas toda vez que cheguei perto dele, João Paulo II tinha três perguntas para mim. Ele as fazia por ordem: "O senhor está cuidando dos pobres?" Esta era a primeira pergunta. A segunda: "O senhor está cuidando dos trabalhadores?" E a terceira: "O senhor está cuidando da juventude?" Era o que queria saber do Brasil e particularmente de São Paulo, já que eu estava à frente de um rebanho enorme, com 10 milhões de pessoas. Com as três perguntas ele tocava pontos essenciais da arquidiocese.

E quais eram as respostas para as três perguntas papais? O senhor, afinal, era contra o governo, contra o establishment...

Pois é, não entendiam a minha oposição em Roma. A Nunciatura não aceitava a oposição que eu fazia ao governo como tal. Eu tentava explicar: o governo é que persegue os trabalhadores e os estudantes diretamente. Paulo Egydio Martins (governador de São Paulo entre 1975 e 1979) não mandou prender estudantes nem comandou a invasão da PUC. Foi Brasília que fez isso. A luta dos trabalhadores do ABC se converteu num movimento nacional porque, naquela hora, aquilo atingiu o cerne da produção brasileira. Mas não entendiam...

Em algum momento o senhor foi repreendido pelo papa?

Ele nunca demonstrou ou deu sinais de que desaprovava o que eu vinha fazendo. Eu poderia ter sido repreendido por aceitar os livros da Teologia da Libertação, por exemplo. Nem isso ele reprovou, mesmo quando estava a sós comigo, quando falávamos frente a frente. Houve uma ocasião em que eu estive com ele à mesa, na companhia de outros cardeais, ele poderia ter me reprovado ali e não o fez. Não posso dizer que tenho mágoa ou lembrança menos agradável deste papa. Tenho a certeza de que ele faz o máximo para entender a situação dos que sofrem.

Divergências à parte, certamente o papa sabia da importância que o senhor e d. Helder Câmara tiveram no Brasil e na América Latina.

O papa e eu jamais conversamos sobre isso. Quando nos encontrávamos, tínhamos fatos reais a discutir. Ele costumava comparar as situações que eu lhe apresentava em relação ao Brasil com a Polônia e a Rússia, países que também atravessaram regimes totalitários. Uníamos, assim, nossa experiência. Há um outro aspecto a considerar. A partir de 1983 e durante oito anos, fui secretário do Sínodo dos Bispos, em Roma. Eu tinha como missão redigir as conclusões de um sínodo e fazer os documentos preparatórios para o próximo. Pois o que escrevemos não foi levado em consideração. Nosso trabalho era feito por gente de grande capacidade, mas nada saía do que escrevíamos. Naquela época o papa mesmo redigia, ou mandava redigir, a versão final dos sínodos. Ele é um homem que gosta de ter a autoridade respeitada. Quanto a mim, sempre o respeitei e evitei a crítica pública.

O senhor está dizendo que o papa mudou as conclusões dos sínodos, é isso?

Ele as formulava de tal maneira que não era o que refletíamos nas discussões.

Em que situação o temperamento forte de João Paulo II prevaleceu sobre a vontade dos outros?

Isso acontecia em quase todos os lugares, em quase todas as situações, com quase todos os temas. Por exemplo, o arrependimento da Igreja Católica a respeito de fatos do passado. Nesse terreno, João Paulo II deixa a marca dele, especialmente em documentos mais antigos do seu papado. Hoje a marca é do cardeal Ratzinger, presidente da Congregação para a Doutrina da Fé.

O arrependimento da Igreja Católica é a bandeira de João Paulo II?

A bandeira dele é a unidade da igreja para se opor ao Mal. Ele sempre achou que o Mal estava penetrando através da pobreza, da juventude... Nós achávamos que os pobres da América Latina eram os evangelizadores, ele não pensava exatamente assim...

O papa parece ter demonstrado mais compreensão teológica em relação à situação dos pobres do que em relação à situação das mulheres.

Você tem razão. Sou a favor da promoção feminina e sempre defendi a ordenação de mulheres pela Igreja Católica. Tive mãe que educou 21 crianças, 13 filhos e 8 adotados, e todos se fizeram na vida. Como é que eu posso aceitar que as mulheres sejam tratadas como minoria? Tenho imenso respeito pelo que foi minha mãe, pelas minhas irmãs... Porém o papa fez muito pelos negros e pela paz na África. Também se interessou para que houvesse paz nos países comunistas. Nesse ponto, não só pensou, mas agiu com energia. Ajudou a construir um mundo unipolar, onde os países ricos devem ajudar os pobres, numa divisão de bens mais justa. Esta é a concepção de mundo que ele tem.

O senhor diz que o papa nunca o censurou por apoiar a Teologia da Libertação, mas o Vaticano foi duro com este movimento dentro da igreja.

Sim, mas o papa, ele próprio, escreveu uma carta que foi lida num dos encontros da CNBB em Itaici, na qual dizia que a Teologia da Libertação não só era oportuna, mas necessária à evolução teológica da Igreja. Este documento foi trazido ao Brasil pelo prefeito da Congregação dos Bispos de Roma e lido em Itaici por d. Ivo Lorscheiter. É uma carta pessoal de João Paulo II, que nunca foi divulgada abertamente em Roma.

Ele teria mudado a maneira de ver as coisas?

João Paulo II sempre foi um homem de coração dividido. Como todos nós, de alguma forma. Amo os pobres, mas não posso ter nada contra aquele que soube construir a riqueza, que teve boas iniciativas ao longo da vida. Todos somos pessoas diante de Deus e temos o direito de viver com dignidade.

O senhor concorda que a Teologia da Libertação perdeu espaço nos últimos anos?

Houve um refluxo acentuado porque, nos últimos tempos, foram emitidos por Roma dois documentos muito negativos em relação ao tema. A Teologia da Libertação também se enfraqueceu na América Latina por não contar mais com os grandes corifeus que a propuseram. Mas está acesa na Índia, na África, em algumas partes do Oriente e tem ramificações pelo mundo. Enfim, é algo que a América Latina semeou e outros colhem os frutos.

O caso Leonardo Boff, cujas teses foram silenciadas pelo Vaticano levando-o à renúncia do sacerdócio, terá sido um divisor de águas?

O refluxo se deve à Cúria Romana e à progressiva promoção de religiosos latino-americanos contrários à Teologia da Libertação para cargos de destaque. São religiosos que hoje trabalham ao lado do papa e, estando o chefe da Igreja doente, eles passam a ter uma influência tremenda. O papa, a meu ver, nunca foi injusto conosco. Se errou, foi pela situação que o cercava.

Nós temos algo como oito, dez anos de um papa adoentado...

No mínimo.. .

. ..e o que se diz é que a Cúria Romana governa a Igreja desde então, sem ter o ônus desse comando, já que o pontífice vive e está investido de suas funções.

Vou contar uma história. Na última visita oficial que fiz a João Paulo II, quando estava deixando a arquidiocese de São Paulo, eu me levantava para me despedir quando ele disse: "Espera, Paulo, tenho uma carta para você... eles fizeram o texto e eu preciso só assinar". Então, propus ao papa que lêssemos juntos a carta. Era um memorando de três páginas, com vários tópicos, escrito em português, totalmente contrário a mim. Comecei a ler, traduzindo para o alemão palavra por palavra. Na altura do terceiro parágrafo, o papa se indignou e disse: "Eu não assino! Nunca falei isso de você, Paulo, e nem quero afirmar isso". E jogou o papel no chão. Eu o apanhei. Daí João Paulo II determinou que eu mesmo escrevesse duas linhas, dizendo que ele considerava respondidas - satisfatoriamente por mim - as questões apresentadas no documento, sem nada a declarar. E assinou um documento que está por aí.

O que o documento dizia?

Que eu não vinha cumprindo obrigações como a de cuidar dos padres de idade. Ora, eu construí uma casa belíssima para eles, no bairro do Ipiranga. Esta lá, pode visitar. Dizia que eu não me encarregava da formação dos jovens. Como? Ergui dez casas de formação religiosa. A cúpula de Roma não gosta de casas desse tipo, prefere que nós construamos grandes seminários, mas o papa nunca me repreendeu a esse respeito. Minha sorte foi sempre ter contado tudo para o papa. Tudo! Eu achava que ele tinha que saber tudo de mim e que deveria perguntar o que quisesse. Cardeal é o colaborador imediato do papa.

Essa carta-memorando tinha um componente vingativo contra o senhor?

Foi feita e entregue pronta ao papa, para ser assinada e repassada na minha visita de despedida. Isso veio de alguém que articulou para que eu saísse mal, ou ficasse mal com o pontífice. Eu deixava a arquidiocese, mas a influência do cardeal Arns era grande em Roma... Este documento de reprimendas, assinado pelo papa, seria alardeado pelos quatro cantos. O plano não deu certo. Quando passei o cargo para o meu sucessor, d. Cláudio Hummes, numa bela cerimônia na Catedral, foi lida uma carta de João Paulo II. E havia nela um louvor grande à minha pessoa e um pedido para que o novo arcebispo continuasse o trabalho desenvolvido aqui.

Então, houve interferências no contato com o papa?

Sim, porque ele viajou muito. Eu lhe disse uma vez: "O senhor viaja tanto que abandona a Cúria Romana". Ele respondeu: "Não, a Cúria Romana sou eu". E comentei: "Santo Padre, nem em São Paulo a Cúria sou eu". Quando o papa se ausenta, a Cúria decide. Se a imagem do papa-peregrino foi benéfica, também sugere que problemas internos da Igreja podem ter sido deixados de lado.

A alta hierarquia do Vaticano se diz contrária à hipótese de renúncia.

Em toda a História isso só aconteceu uma vez, com o papa Celestino V, no século 13. Ele era um religioso de ordem contemplativa, preferiu voltar à vida monástica. Praticamente a renúncia nunca existiu e não se quer introduzir isso agora.

Paulo VI, papa entre 1963 e 1978, não quis renunciar?

Sempre se comentou isso, mas nunca ouvi nada do próprio Paulo VI. Eu falava muito com ele, com liberdade. Conversávamos em francês. Eu me doutorei na Sorbonne, em Paris, portanto sempre tive muita familiaridade com este idioma que Paulo VI tão bem usava. Falava um francês não só correto, mas bonito. Conversávamos como dois bons amigos e ele jamais disse que gostaria de renunciar. Dizem que sofria de depressão, mas tudo tinha a ver com o semblante tristonho. Isso impressionou o mundo cristão e muitos davam Paulo VI como um papa desanimado. Não era. Falávamos como dois otimistas diante da vida.

Ele foi um bom chefe para o senhor?

Não poderia ter sido melhor! Vou contar algo inédito. Fui ter com ele antes da última viagem que fiz à Terra Santa. Eu estava em Roma por alguns dias e então perguntei ao chefe da residência do papa se poderia visitar Sua Santidade. O religioso disse que sim, mas por cinco minutos. E que eu levasse por escrito tudo o mais que eu gostaria de tratar com Paulo VI. O religioso foi claro: "Eu não posso proibir a visita, afinal o senhor é cardeal, mas faça o favor de deixar o que tiver de ser dito por escrito, fique cinco minutos com o papa e peça licença para se retirar". Assim mesmo. Eu fui, entrei, falei cinco minutos, olhei para o relógio e disse: "Santo Padre, passaram-se os cinco minutos que me deram para falar com o senhor." "O quê?", reagiu ele. "Quem é que manda no Vaticano? O senhor e eu, nós que estamos conversando tão bem, nós mandamos no Vaticano." Em seguida, o homem bateu à porta e sinalizou para eu me despedir. Paulo VI determinou que a conversa prosseguisse. O homem saiu e o papa falou: "Vamos para o fundo do salão, atrás dos livros, assim ele poderá bater o quanto quiser que nós não ouviremos". Ficamos de prosa por 55 minutos, conversando sobre a Terra Santa, tema da predileção dele. A região já começava a enfrentar as dificuldades de convivência de hoje, dificuldades tão reais. Por fim, eu lhe disse: "Santidade, trouxe comigo sete estudantes que nunca puderam cumprimentá-lo. Poderia fazê-los entrar?" "Que venham", Paulo VI disse. E os estudantes entraram, falaram com ele e o abraçaram. Até fotografias tiraram juntos. Paulo VI foi um pai e é um irmão de grata memória para mim.

E o senhor teve contato com João Paulo I, papa por 33 dias?

Sim, eu havia estado na terra dele. Visitei a cidade dele (Forno di Canalle, em Belluno, Itália), fui ao quarto onde nasceu, às paróquias onde esteve. Ele me disse: "Não sabia que o senhor era repórter." Pouco antes de ter sido eleito papa, em agosto de 1978, havia estado no Brasil a convite de d. Ivo. Ficamos amigos apesar de termos nos encontrado poucas vezes na vida. Aliás, fomos nomeados cardeais juntos, na mesma turma, há 31 anos.

O senhor chegou a ser visto como um papabile?

Só entre os corintianos (riso). Eu nunca poderia ser cogitado para papa porque tinha fama de ser um religioso agressivo com o governo militar. E causaria problemas um papa tão enérgico com as injustiças.

Hoje se fala que o seu sucessor, d. Cláudio, é papabile. Também é conversa de corintiano?

Com d. Cláudio é diferente. Nunca aceitei mais do que dois cargos em Roma, porque não queria ficar ausente da arquidiocese. Jamais tive familiaridade com as coisas do Vaticano. D. Cláudio tem uma dúzia de cargos e é conhecido em toda Roma. É bem possível que o nome dele seja ventilado.

Quais eram os seus cargos?

Eu me ocupei da secretaria dos não-crentes, portanto, comunistas e outros, e de outra sobre o culto divino, uma área que envolve as manifestações religiosas do povo. Costumava ir a Roma duas vezes por ano e colaborar com a elaboração de documentos, coisa que sempre fiz com muito gosto. No grupo que se ocupava dos não-crentes, pude trabalhar com o cardeal Koenig, arcebispo emérito de Viena, recentemente falecido. Tratamos dos direitos humanos e ele foi por 18 anos meu chefe. Fomos muito amigos. Era o homem perfeito, de mentalidade aberta, que estabeleceu elos entre o comunismo e o cristianismo.

Falando em não-crentes, a esquerda no Brasil sempre teve no senhor um esteio. Muitos eram comunistas, materialistas e ateus.

Na defesa dos direitos humanos, jamais perguntei: o senhor tem fé? O senhor é católico? Porque aí não importa cor, fé, classe social, somos pessoas humanas e precisamos ser respeitados. Se houvesse um cachaceiro preso e torturado, eu iria lá, reclamar. Porque era uma pessoa humana violada por aqueles que justamente deveriam cuidar da ordem. Nunca tive preferência pelo comunismo. Nem pelo capitalismo. Fui sempre por uma terceira ordem, que eu esperava que viesse agora com o Lula.

Que ordem seria essa?

Uma ordem em que todos tenham o suficiente, em que a renda e os bens sejam distribuídos com justiça e igualdade. Não estou vendo isso, e gostaria de ver. A riqueza continua muito concentrada neste país. 2% da população tem mais do que os 98% restantes. Isso é um escândalo.

O senhor está chateado com o governo Lula?

O que me aborrece é que isso continua com Lula, um homem que sempre esteve do nosso lado, do lado do trabalhador que ganha o pão no suor do rosto, como diz a escritura. Eu me indigno quando cortam verbas sociais para atender a outras finalidades, como melhorar a remuneração do Exército. Não aceito isso. Resolver o desafio social é o que dirá se somos ou não civilizados.

Falta coragem ou competência ao governo?

Falta escolher pessoas certas para atuar no terreno social. Pessoas que tenham autoridade e influência junto ao povo, porque assim a Nação inteira se socializa. Não é algo que se resolva por decreto. Lula precisa contar com pessoas que entendam do assunto e que tenham verba para investir.

Tem falado com o presidente?

Não falei mais com Lula desde que ele assumiu. Antes da eleição, dois ou três dias antes, ele passou uma tarde comigo, conversando. Somos amigos, sempre fomos. Não tenho nada contra a pessoa dele, mas tenho contra o regime dele. Naquele encontro, conversamos sobre amenidades porque eu tinha certeza de que ele faria muito pelos problemas sociais do País. E não fez.

O que dói mais quando o senhor olha para os pobres?

Dói o que vejo no Amparo Maternal, onde nascem as crianças mais pobres do mundo. Já vi três mulheres esperando neném na mesma cama, por falta de leito. Quantas dificuldades enfrentamos para ter algum apoio para esta obra iniciada por d. José Gaspar, ex-arcebispo de São Paulo. O pobre precisa nascer com saúde e ter a perspectiva de um crescimento normal.

Mas e as crianças na África, condenadas a viver e a morrer na epidemia da aids? O senhor aceita o veto da igreja em relação ao uso da camisinha?

Não posso ir contra a vontade do papa. Se fosse da minha deliberação, eu iria contra a morte, em favor da vida. Mas que o uso da camisinha não se confunda com a liberalização do sexo. Devemos entender que corpo, espírito e alma constituem uma unidade. As pessoas precisam ser educadas para o sexo como são educadas para outras áreas. E é bom dizer: os problemas começam na família. Aos poucos a humanidade vai voltar a pensar naquelas coisas indispensáveis para haver harmonia na sociedade.

Não lhe parece que o discurso em prol da família, na Igreja, vem embrulhado num conservadorismo sem lugar no mundo?

Deveríamos falar em família com respeito e simplicidade. Hoje nem a televisão une a família, porque cada um quer ter o seu aparelho em seu quarto, em seu canto da casa. A família precisa se juntar em torno das idéias.

Como vai a Igreja no Brasil?

É uma bênção a CNBB ser presidida por alguém como d. Geraldo Magella, que foi durante oito anos meu secretário. Eu o ordenei bispo. Trabalhamos em Roma quando virei cardeal, pois ele é quem elaborava meus pronunciamentos em italiano. Junto com d. Antônio Celso Queiroz, que, a meu ver, é o grande gênio do episcopado brasileiro, realiza um excelente trabalho na CNBB.

Com a aposentadoria do bispo de São Félix do Araguaia, d. Pedro Casaldáliga, ligado à Teologia da Libertação, pensou-se que o Vaticano iria designar um religioso conservador. Mas virá um parente seu. O senhor mexeu os pauzinhos?

Ah, não vem ao caso. Frei Leonardo Ulrich Steiner, meu primo, é homem de boa fé e vai continuar o trabalho. Vou nomeá-lo bispo, em Blumenau, e, se a saúde e os médicos permitirem, irei com ele para a posse em São Félix. D. Pedro vai continuar lá, junto das pessoas que tanto ajudou. Está tudo resolvido.

Como será o sucessor de João Paulo II?

Gostaria que o eleito, indicado pelo Espírito Santo, seja um homem capaz de unir Ocidente e Oriente, todas as religiões e filosofias de vida, e assim a humanidade terá condições de lutar pela paz. Sim, paz entre as religiões e os religiosos.

Este homem existe?

Existe no cardinalato.

Quem seria?

Não ouso dizer. Confio na Igreja e tenho esperança na humanidade.

Ele terá de repetir os passos de João Paulo II?

Deixemos essa questão para o Espírito Santo.