Título: Conflito de competência
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/04/2005, Notas e Informações, p. A3

A tumultuada trajetória da reforma do Judiciário, que foi aprovada no final de 2004, é a demonstração inequívoca do quanto é difícil modernizar as instituições brasileiras, fortemente marcadas pelo anacronismo administrativo e pelo emperramento burocrático. Só a tramitação do projeto no Congresso demorou 13 anos, período em que foi reescrito diversas vezes por diferentes relatores pertencentes a distintos partidos. E, agora que finalmente começa a ser posto em prática, a magistratura descobriu que uma pequena falha na redação abriu caminho para um conflito de competência entre setores especializados da Justiça, exigindo providências urgentes do Supremo Tribunal Federal (STF).

O problema começou quando, por pressão dos juízes trabalhistas, que temiam o esvaziamento de sua instituição, dada a crescente disposição de patrões e empregados de recorrer a mecanismos de conciliação e arbitragem para resolver suas controvérsias, o Congresso aumentou consideravelmente as atribuições da Justiça do Trabalho. Para tanto, na última versão da reforma do Judiciário, os parlamentares acrescentaram nove incisos ao artigo 144 da Constituição de 88.

Um deles, o inciso VI, concedeu à magistratura trabalhista a prerrogativa de julgar ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho. No entanto, no calor dos debates e das votações, os congressistas se esqueceram de promover a alteração correspondente no artigo 109, que trata das competências da Justiça Federal, ao qual essa matéria estava subordinada.

Desde então, patrões e empregados e seus respectivos advogados ficaram sem saber a qual das duas Justiças deveriam submeter esse tipo de causa. O conflito de competência deveria ter sido resolvido no mês passado, quando o STF, ao julgar um processo de dano por acidente de trabalho, por 8 votos a 2, definiu a Justiça Federal e as Justiças estaduais como foros competentes para tratar dessa matéria. "Quando acontece um acidente de trabalho, pode haver uma ação por conta do acidente e uma ação de indenização por dano moral decorrente desse acidente. Não convém que duas Justiças julguem processos originados de um único fato", disse o ministro Cezar Peluso, após afirmar que o Judiciário brasileiro não poderia ficar exposto ao risco de um juiz comum não reconhecer a culpa do empregador no acidente e, ao mesmo tempo, um magistrado trabalhista condenar a empresa por dano moral.

No entanto, insatisfeitos com essa decisão, muitos juízes trabalhistas, cuja entidade representativa chegou a divulgar um manifesto público contra o STF, simplesmente optaram por ignorá-la. Diante da insegurança jurídica provocada por essa "indisciplina judiciária", Peluso passou a defender a edição da primeira súmula vinculante na história do País. A idéia é transformar em determinação oficial, a ser cumprida por todos os tribunais brasileiros, o entendimento segundo o qual a competência pelo julgamento das ações de dano moral causado por acidente de trabalho, movidas por empregados contra empregadores, é da Justiça Federal e das Justiças estaduais.

O problema dessa proposta, que até o momento conta com o apoio da maioria dos ministros do STF, é que ela colide com a jurisprudência da própria corte nessa matéria. Em 2003, o Supremo definiu a Justiça do Trabalho como o foro competente das ações sobre descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores. Se os ministros descumprem uma súmula deles próprios, como podem exigir dos demais tribunais que sigam as súmulas vinculantes? - protestam as direções da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat). Em sua defesa, ministros do STF alegam que a configuração da corte mudou, após as quatro indicações feitas pelo presidente Lula, e que, pela sugestão de Peluso, todas as ações por dano moral, à exceção das decorrentes de acidente de trabalho, ficarão a cargo dos juízes trabalhistas.

Na realidade, independentemente dos interesses corporativos em jogo, esse conflito de competência e a solução que o STF propõe para ele mostram como é difícil vencer o desafio da modernização do Judiciário, para convertê-lo naquilo que a sociedade tanto espera dele. Ou seja, um Poder eficiente e, acima de tudo, previsível.