Título: Uma MP cruel
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/04/2005, Notas e Infomações, p. A3

Ao demonstrar intenção de corrigir alguns dos muitos excessos contidos na Medida Provisória 242, que torna mais rigorosas as regras para a concessão de benefícios previdenciários, o governo Lula demonstra ter entendido algumas lições deixadas pela humilhante derrota que sofreu no episódio da MP 232, a do Imposto de Renda das Pessoas Físicas. Uma das lições é que a sociedade não aceita mais passivamente arcar com o custo dos erros e da ineficiência do governo. A MP 242 foi uma das primeiras iniciativas do ministro da Previdência, Romero Jucá, que assumiu o cargo em março. Sua edição teve como justificativa o combate às fraudes para a obtenção de auxílio-doença, que se intensificaram nos últimos anos.

O crescimento das despesas com esse tipo de benefício foi, de fato, espantoso. Os pagamentos mais do que triplicaram entre 2001 e 2004, saltando de R$ 2,5 bilhões para R$ 9 bilhões. Não se constatou nesse período o surgimento de nenhum fato técnico que justificasse tal aumento. A conclusão do ministro foi que, na maioria dos casos, o aumento de despesas se deveu a fraudes.

É muito provável que ele tenha razão. A resposta do governo, entretanto, não foi a adoção de medidas práticas para conter os atos ilegais, entre as quais o maior rigor na análise técnica dos pedidos ou o reforço da fiscalização. Foi, isto sim, a edição da MP 242, que não se destina a atacar frontalmente as fraudes, mas sim a dificultar enormemente a concessão desses benefícios e reduzir seus valores.

Tal expediente impõe prejuízos financeiros e desgaste às pessoas de bem, que integram a lista de contribuintes do sistema previdenciário e que, por alguma razão, têm necessidade de recorrer aos benefícios a que legitimamente têm direito. Mas não necessariamente impedirá o surgimento de novas modalidades de fraudes.

Não está em discussão, é óbvio, a necessidade de combater os fraudadores. Esse combate deve ser feito sempre, e da maneira mais eficaz possível. Todo contribuinte honesto exige que isso seja feito. Mas não é assim que o governo vem agindo no caso da Previdência. Faltam peritos, faltam fiscais e a terceirização de serviços, como o de avaliação médica dos pedidos de auxílio-doença, tornou muito mais frouxos os critérios de concessão desses benefícios.

Louvável a preocupação do governo com a contenção do déficit do sistema previdenciário. Esta, na verdade, é a grande ameaça à preservação da política fiscal rigorosa do governo Lula que, até agora, tem garantido a estabilidade e o crescimento da economia. Mas não é com a transferência de responsabilidades e deveres do governo para os ombros da sociedade e dos contribuintes que se realiza o combate efetivo ao rombo da Previdência e de outros setores do Estado brasileiro.

A calamidade do sistema público de saúde - sustentado pelo dinheiro do contribuinte e que, por isso, deveria prestar-lhe serviços qualitativa e quantitativamente proporcionais ao enorme volume de recursos que tem à sua disposição - empurra cada vez mais brasileiros para a busca de auxílios previstos no regime previdenciário, como observou o sociólogo e economista José Pastore, em artigo publicado no Estado há algumas semanas.

Nada se faz para combater a informalidade, que se transformou no maior ralo dos recursos da Previdência Social. De uma população economicamente ativa estimada em quase 80 milhões de brasileiros, cerca de 47,5 milhões, ou 60%, trabalhavam no mercado informal no ano passado. Sem registro em carteira, não gozavam de nenhuma proteção legal, mas também não recolhiam nenhuma forma de imposto ou de contribuição, como a do sistema previdenciário. Isso sem contar a grande quantidade de trabalhadores registrados com salários inferiores aos efetivamente recebidos, justamente para pagar menos tributos.

Aí está a grande fonte do déficit da Previdência. Tentar combater esse déficit impondo mais dificuldades a contribuintes que já enfrentam problemas de saúde é, além de um ato de crueldade social, um método ineficaz, fiscal e financeiramente, e burro, politicamente. Parece que o governo quer corrigir essa burrice, ou pelo menos parte dela