Título: Um dia a casa cai. Cai? Quando? (2)
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/04/2005, economia, p. B2

Petróleo é um problema. Os preços da semana passada alcançaram uma alta real de 75% sobre a média de dois anos atrás. Gastos obrigatórios em combustível caro limitam o poder aquisitivo dos consumidores, reduzindo a capacidade de crescimento nos países importadores líquidos. Acrescentem-se a inflação e o desequilíbrio nas finanças internacionais, com a forte transferência de renda para os países exportadores de petróleo, e se tem aí um verdadeiro risco ao crescimento global, que foi exuberante no ano passado.

Mas qual o tamanho desse risco? Para começo de conversa, é menor do que nas crises de 1974 e 1979. Na primeira, os preços, em termos reais, quase triplicaram. Na segunda estocada, um pouco menos, alta de 150%, mas ainda assim o dobro da alta atual.

Além disso, o mundo hoje é menos dependente de petróleo. Ganhos de tecnologia levaram a novas fontes de combustível e a um uso mais eficiente do óleo. Gera-se muito mais energia com o mesmo barril do que 30 anos atrás.

Há muita especulação e risco político nas cotações internacionais, mas o fato é que a maior parte da alta de preços é, por assim dizer, benigna. Decorre de aumento de consumo por causa do forte crescimento de economias importadoras líquidas, como Estados Unidos e China. E é mais fácil acomodar altas de preços em ambiente de expansão da renda.

Finalmente, há um fator institucional também a explicar por que o petróleo caro ainda não gerou inflação expressiva: a capacidade e a respeitabilidade dos bancos centrais.

Há uma percepção generalizada de que as autoridades monetárias pelo mundo afora sabem como conter pressões inflacionárias. Os remédios podem ser amargos, mas depois das péssimas experiências inflacionários dos anos 70 e 80 o mundo valoriza a estabilidade de preços e topa sacrifícios para mantê-la.

O risco petróleo seria, portanto, um tigre de papel? Há quem cogite dessa hipótese. Alguns analistas entendem que o preço - acima de US$ 50 o barril - já alcançou o pico e estaria na iminência de desabar. Isso ocorreria no momento em que os compradores não comerciais - fundos de pensão, fundos hedge, especulativos - deixassem os mercados futuros, entendendo que não haveria mais oportunidades de fortes ganhos. A estimular essa percepção estaria o aumento de estoques de óleo, o que já está em marcha.

A China, por exemplo, anunciou formalmente planos de elevar substancialmente seus estoques estratégicos e já está comprando. Ora, estoques cada vez mais elevados indicam que a demanda será menor no futuro, o que não sustenta preços.

Se convencidos disso, os fundos financeiros abandonariam o mercado e as cotações entrariam em queda. Sonho? Pode ser, mas é fato que os preços registraram forte oscilação nas últimas décadas. Depois do pico dos anos 70, caíram a US$ 12 o barril e muita gente achava que ficariam abaixo dos US$ 10.

E a banda de preço definida pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), fixada há um ano, vai de US$ 22 a US$ 28. Isso dá bem uma idéia da imprevisibilidade do mercado, assim como do alto componente especulativo nas cotações.

E especulação, sabe-se, pode ser para cima ou para baixo. De todo modo, o FMI está sugerindo que o mundo se acostume com o petróleo caro, por razões estruturais.

O óleo é um recurso não renovável. Usou, acabou. Acredita-se que todas as reservas já estejam definidas e avaliadas e se sabe que o consumo cresce com o contínuo crescimento global. Ou seja, o petróleo não dá para mais um século. Vai ser caro e será preciso utilizar cada vez mais outras fontes - olha aí o álcool brasileiro.

Generalizado o uso de novas fontes, o petróleo chegará ao fim melancolicamente. Mas o nosso problema é para amanhã. Ainda somos uma geração petróleo-dependente.

Até aqui, o mundo cresceu, e cresceu sem inflação. Mas há uma mudança importante no cenário. No ano passado, todo o mundo experimentou forte expansão. Um momento raro e auspicioso: praticamente todos os países aumentando renda.

Em 2005, há uma desaceleração generalizada, porém desigual. O produto interno bruto (PIB) dos Estados Unidos, por exemplo, na conta do FMI, deve crescer 3,6% neste ano, ante 4,4% no ano passado. Uma perda muito limitada. O crescimento permanece vigoroso.

Já o Japão, a segunda maior economia, desaba de 2,6% para 0,8%. A zona do euro vem de quase 2% para 1,5%, mas com péssimo desempenho do maior PIB da região, o da Alemanha, que não deve crescer nem 1%. Em compensação, a China deve desacelerar minimamente.

RECESSÃO MUNDIAL SÓ SE MUITAS COISAS DEREM ERRADO AO MESMO TEMPO

Expansão de 9,5% no ano passado, de 8,5% neste.

Pode-se interpretar isso de um modo positivo ou negativo. Do primeiro modo: tudo bem porque as duas locomotivas - Estados Unidos, o shopping do mundo, e a China, a fábrica - seguem em marcha acelerada.

Do segundo: as locomotivas também estão sob ameaça de desequilíbrios. Nos Estados Unidos, o risco é óbvio: déficit em contas externas de 6% do PIB e de 5% nas contas públicas. Na China, a perspectiva de superaquecimento.

Para conter os déficits, quando fizerem isso os Estados Unidos precisarão reduzir seu consumo. O consumidor mundial irá menos ao shopping e gastará menos a cada compra. Com a freguesia encolhida, as fábricas do mundo terão de reduzir a produção.

A chinesa é a primeira a sofrer, mas é preciso notar que Japão e Europa também vivem, em grande parte, de vender para os Estados Unidos, especialmente neste momento em que a demanda local é fraca naquelas duas regiões ricas. Ou seja, a retração do consumidor americano impõe uma queda da produção em todo o mundo desenvolvido e, por tabela, nos países emergentes.

Uma retração mundial. O que China, Coréia do Sul e demais asiáticos fariam com suas máquinas exportadoras? Há, portanto, um cenário de recessão mundial.

Qual a probabilidade? Por enquanto, pequena, porque para que se materialize é preciso que muitas coisas, quase todas, dêem errado ao mesmo tempo. Também é necessário que as autoridades mundiais simplesmente deixem a casa cair, incapazes de agir.

Já tratamos desse tema no artigo publicado no último dia 11. De lá para cá, saiu uma importante advertência, feita por Paul Volcker, ex-presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos (13/4, A2).

Para muitos analistas, Volcker simplesmente salvou o mundo ao pilotar o Fed nos tumultuados anos de 70 e 80. Pois ele acha que as atuais autoridades estão bobeando. Iludidas pelo fato de que a economia global continua em crescimento sem inflação ou usando isso como desculpa, as autoridades demoram a pôr em marcha os instrumentos para controlar os fortes desequilíbrios já definidos.

A imagem de Volcker é forte: o mundo está como patinadores descrevendo belas piruetas sobre uma camada de gelo muito fina. Haverá ação antes de o gelo quebrar? Suspense. Na última grande crise mundial, a de 1998, as autoridades agiram no último momento. Mas quem comandava a economia mundial era o presidente Bill Clinton, com Robert Rubin, Larry Summers e Alan Greenspan. Este continua lá. Já os substitutos dos outros três não inspiram a mesma confiança, para dizer o mínimo.

A esperança é que as circunstâncias, não raro, forjam e forçam as soluções. Há um cenário de saída controlada. Veremos.?