Título: Um atraso no ajuste de contas da Igreja
Autor: Leonardo Boff*
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/04/2005, Especial, p. H6

O pontificado de João Paulo II foi longo e complexo. Só lhe faremos justiça se o considerarmos dentro de um amplo marco de temas que desde há muito preocupam a Igreja. Qual é a característica fundamental desse papado? A restauração e o retorno à grande disciplina. João Paulo II não se caracterizou pela reforma e sim pela contra-reforma. Representou a tentativa de deter um processo de modernização que irrompeu na Igreja desde os anos 1960 e que estava interessando a todo o cristianismo. Deste modo, atrasou o ajuste de contas que a Igreja está fazendo em relação a dois graves problemas que a martirizam há quatro séculos.

O primeiro está ligado ao surgimento de outras igrejas como conseqüência da Reforma Protestante do século 16, que fraturou a unidade da Igreja Católica Romana e a obrigou a tolerar outras igrejas que interpretava como cismáticas e heréticas.

A segunda grande questão deriva da modernidade das luzes, com o surgimento da razão, da ciência e da tecnologia, das liberdades civis e da democracia. Essa nova cultura colocava em xeque a revelação da qual a Igreja se sente portadora exclusiva e denunciava a forma em que a Igreja se organiza institucionalmente: como uma monarquia absolutista espiritual em contradição com a democracia e a vigência dos direitos humanos.

Com relação às igrejas evangélicas, a estratégia do Vaticano apontava para a reconversão a fim de restaurar a antiga unidade eclesiástica sob a autoridade do papa. Para com a sociedade moderna, a relação era de crítica e condenação de seu projeto de emancipação e secularização com vistas a recriar a unidade cultural sob a égide dos valores morais cristãos.

As duas estratégias fracassaram. As outras igrejas cresceram e se afirmaram em todos os continentes. A sociedade moderna com suas liberdades, sua ciência e sua técnica converteu-se no paradigma para o mundo inteiro. A Igreja Católica viu-se transformada num bastião de conservadorismo religioso e autoritarismo político.

Foi obra do bom senso e da ousadia de um papa, João XXIII, a convocação de um Concílio Ecumênico para enfrentar valentemente aquelas duas questões não resolvidas. Efetivamente, o Concílio Vaticano II (1962-65) assumiu como lema não mais o anátema, mas a compreensão, não mais a condenação, mas o diálogo. Com respeito às outras igrejas, inaugurou o diálogo ecumênico que pressupõe a aceitação da existência de outras igrejas. Com respeito ao mundo moderno, colocou-se uma reconciliação com as esferas do trabalho, da ciência, da técnica, das liberdades e da tolerância religiosa.

Mas ainda faltava o terceiro ajuste de contas: com os pobres, que são a grande maioria da humanidade. Foi mérito da Igreja latino-americana recordar que não existe somente um mundo moderno desenvolvido, mas também um mundo subdesenvolvido que suscita uma pergunta incômoda: como anunciar Deus como Pai num mundo de miseráveis? Só tem sentido anunciar Deus como Pai se formos capazes de tirar os pobres da miséria, se convertermos essa realidade má em boa.

É precisamente o que fizeram os setores mais dinâmicos na América Latina, animados por alguns profetas como Helder Câmara. A ordem era a opção pelos pobres e contra a pobreza. A virada incentivou muitos cristãos a ingressar nos movimentos sociais de libertação e até em frentes armadas, enquanto numerosos bispos e cardeais assumiram um papel destacado no combate às ditaduras militares e na defesa dos direitos humanos, entendidos principalmente como direitos dos pobres.

João Paulo II foi eleito papa quando estava em curso esse processo.

Seu pontificado se situou desde o começo na contracorrente dessas tendências que eram dominantes. Seguramente foram determinantes em sua postura sua origem polonesa e os círculos da Cúria Romana, marginalizados mas não derrotados pelo Concilio Vaticano II. Em Roma, o novo papa se encontrou com a burocracia vaticana, conservadora por natureza, que pensava o mesmo que ele. Estabeleceu-se assim um bloqueio histórico poderoso papa-cúria com a meta de impor a restauração da identidade e a antiga disciplina.

As condições pessoais de João Paulo II conseguiram realizar da melhor maneira esse projeto, graças a sua figura carismática, a sua inegável irradiação, a sua habilidade de dramatização midiática.

Para realizar seu desígnio de restauração, dotou-se de instrumentos adequados. Reescreveu o direito canônico para que enquadrasse toda a vida da Igreja, fez publicar o Catecismo Universal da Igreja Católica e com isso oficializou o pensamento único dentro da Igreja. Tirou poder de decisão do Sínodo de Bispos, submetendo-o totalmente ao poder papal, assim como limitou o poder das conferências continentais de bispos, das conferências nacionais episcopais, das conferências de religiosos nos níveis nacional e internacional, marginalizou o poder de participação decisória dos leigos e negou plena cidadania eclesial às mulheres, relegadas a funções secundárias, sempre longe do altar e do púlpito.

Junto com seu principal assessor, o cardeal Joseph Ratzinger, o papa professava uma visão agostiniana da historia, para a qual o que realmente conta é somente o que passa pela mediação da Igreja, portadora da salvação sobrenatural. Segundo essa visão, o que passa pela mediação dos homens e da história não alcança a altura divina e é insuficiente perante Deus.

Essa postura o induziu a uma fundamental incompreensão da teologia latino-americana da libertação. Esta afirma que a libertação deve ser obra dos próprios pobres. A Igreja é somente uma aliada que reforça e legitima a luta dos pobres. Para o cardeal Ratzinger essa libertação é meramente humana e carente de relevância sobrenatural.

É preciso destacar que o papa teve uma visão curta e simplista desse tipo de teologia, que interpretou com a lógica de seus detratores e, hoje o sabemos, a partir das informações que a CIA lhe entregava, particularmente sobre a influência dos teólogos da libertação na América Central. A interpretou como um cavalo de Tróia do marxismo que ele era obrigado a denunciar, em razão da experiência adquirida sobre o comunismo em sua Polônia natal. Convenceu-se de que o perigo na América Latina era o marxismo, quando o verdadeiro perigo sempre foi o capitalismo selvagem e colonialista com suas elites antipopulares e retrógradas.

Em João Paulo II prevalecia a missão religiosa da Igreja e não sua missão social. Se tivesse dito "vamos apoiar os pobres e comprometer a Igreja com as reformas em nome do Evangelho e da tradição profética", outro teria sido o destino político da América Latina. Pelo contrário, organizou a restauração conservadora em todo o continente: afastou bispos proféticos e designou bispos distanciados da vida do povo, fechou instituições teológicas e sancionou seus docentes.

Houve uma grande contradição entre as atitudes do papa e seus ensinamentos. Para fora, se apresentava como um paladino do diálogo, das liberdades, da tolerância, da paz e do ecumenismo; pediu perdão em várias ocasiões pelos erros e condenações eclesiásticas no passado; reuniu-se com líderes de outras religiões para rezar, unidos, pela paz mundial. Mas dentro da Igreja, calou o direito de expressão, proibiu o diálogo e produziu uma teologia com fortes tons fundamentalistas.

O projeto político-eclesiástico assumido pelo papa não resolveu os problemas que se havia colocado com relação à Reforma, à modernidade e à pobreza. Antes os agravou, atrasando um verdadeiro ajuste de contas.

As limitações de seu estilo de governo da Igreja não impediram que João Paulo II alcançasse a santidade pessoal em um grau eminente. Assim foi, no marco de uma religião "à antiga" com grande devoção aos santos e, em especial, à Nossa Senhora, às relíquias e aos lugares de peregrinação. Foi homem de profunda oração. Às vezes, ao orar, se transfigurava e empalidecia, outras vezes gemia e vertia lágrimas. Uma vez o surpreenderam em sua capela particular estendido no solo em forma de cruz, como em êxtase, à semelhança dos iluminados espanhóis do século 16.

A quem cabe a última palavra? À história e a Deus. Nós só poderemos aceder à história, que nos dirá qual foi seu real significado para o cristianismo e para o mundo nesta fase de mudança de paradigmas e de mudança de milênio.

* Leonardo Boff, teólogo da libertação, em 1985 foi punido com um ano de "silêncio obsequioso" e deposto de suas funções editoriais e acadêmicas no campo religioso pelas autoridades doutrinais do Vaticano. Texto retirado do site da Agencia de Información Fray Tito para América Latina (Adital), de 4 de abril de 2005