Título: Uma mudança que vai além da Igreja
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/04/2005, Especial, p. H8

A escolha do novo papa não interfere apenas na vida dos católicos praticantes. Seus reflexos se estendem para além dos muros da Igreja Católica, afetam vidas de pessoas que nunca pisaram num templo e influenciam governos. Nesse momento as especulações sobre a sucessão pontifícia são acompanhadas com nítido interesse por organizações feministas, de controle demográfico, de prevenção da aids, de pesquisas científicas com células-tronco e de defesa dos direitos dos homossexuais, entre outras. Em todos os casos citados, há uma torcida para que os cardeais escolham um papa menos tradicionalista e dogmático que o polonês Karol Wojtyla. De acordo com um dos diretores da organização não-governamental Pela Vidda, que trabalha com prevenção da aids e apoio aos portadores do vírus HIV, o pontificado de João Paulo II só prestou desserviços nesta área.

"Toda vez que a Igreja no Brasil e em outros países, sob a orientação de Roma, se opôs ao uso da camisinha, ora alegando motivos morais, ora se opondo à ciência, afirmando que o método não é 100% seguro, acabou atrasando e prejudicando o trabalho de prevenção contra a aids", disse. "Seria bom se elegessem um papa capaz de dar respostas mais adequadas a uma realidade que não existia no tempo em que foram formulados os dogmas da Igreja."

NO CAIRO

A feminista Terezinha de Oliveira Gonzaga, presidente da organização União de Mulheres, lembra que os diplomatas do Estado do Vaticano, espalhados por todo o mundo, têm tentado barrar conquistas das mulheres. Ela cita como exemplo a conferência mundial sobre população e cidadania, organizada pela ONU, em 1994, no Cairo.

Naquele encontro os diplomatas do Vaticano, sob ordens do papa, tentaram alterar o conteúdo do chamado programa de ação, que já havia sido desenhado em encontros anteriores e que tinha o presidente Bill Clinton como um de seus principais defensores. A diplomacia da Santa Sé, aliada a muçulmanos fundamentalistas e governos conservadores, como o da Argentina, visava principalmente aos trechos do texto que tratavam de planejamento familiar, maternidade segura, necessidades sexuais dos adolescentes e, principalmente, aborto.

"Tentaram frear conquistas das mulheres", diz Terezinha. "Perderam quase tudo, mas voltaram à carga nas conferências internacionais que vieram em seguida, em Istambul e em Pequim. Se tivessem ido além, segundo Terezinha, acabariam influenciando as políticas dos governos em relação à ampliação do acesso a métodos de controle de natalidade.

ORGANIZAÇÃO SINGULAR

A Igreja Católica, que em termos de linguagem globalizada, poderia ser qualificada como a maior transnacional do planeta, é uma organização singular porque tem objetivos espirituais e seculares. O papa é ao mesmo tempo o sucessor de São Pedro e o soberano do Vaticano - um Estado independente, reconhecido no direito internacional e instalado num enclave de 440 hectares na capital da Itália.

Seus emissários atuam em duas frentes. A primeira, mais visível, é a espiritual. Os bispos, que são como príncipes nesta espécie de monarquia, tentam abertamente influir na formulação de textos constitucionais e leis de cada país. A segunda, é a da diplomacia. A Santa Sé tem diplomatas credenciados em quase todas as nações. Entre as exceções estão a China, o Vietnã e a Coréia do Norte.

Como Estado, o Vaticano se opôs ao embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba - o que ajuda a explicar a inusitada presença de Fidel Castro na celebração de uma missa em memória do papa, em Roma. A diplomacia vaticana também se opôs às sanções americanas contra o Irã, o Iraque e a Líbia, sob o argumento de que afetavam pessoas inocentes. Isso não paralisou os americanos, mas contribuiu para expor para o mundo as dificuldades enfrentadas por aquelas nações.

Atuando em ligação estreita com a CIA, no governo de Ronald Reagan, o papa ajudou a derrubar o regime comunista na Polônia. Mais recentemente, o conservadorismo dele em relação a questões de comportamento, como o sexo antes do casamento e o aborto, contribuiu para a aproximação dos grupos de direita católicos com os protestantes, nos Estados Unidos.

Estes grupos, que em outras eleições manifestavam um tíbio interesse pelo processo eleitoral, tiveram enorme influência na reeleição do presidente George W. Bush.

Estas questões ajudam a explicar por que a eleição do líder espiritual católico e monarca do Vaticano desperta tanto interesse além dos muros da Igreja.