Título: O povo não é bobo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2005, Notas & Informações, p. A3

F icou mais uma vez demonstrado que os ares do Planalto - como a soberba que os deuses gregos faziam se apossar daqueles a quem queriam destruir - cegam os que os aspiram no isolamento dos gabinetes palacianos. É uma cegueira seletiva. Impede os seus portadores de enxergar algo que está à vista de todos, claro como a luz do dia. Estamos nos referindo à inocuidade das tentativas do governo, entre toscas e ridículas, de enganar a população. O que os brasileiros puderam assistir nos telejornais da quinta-feira foi apenas o último ato de uma farsa deprimente. Com o olhar esgazeado, o deputado Arlindo Chinaglia, líder do PT na Câmara, apareceu rasgando em dois uma folha de papel para levar o público a crer que foi isso que o presidente Lula tomara a iniciativa de fazer com a Medida Provisória 232, aquela que o País escorraçou por estar farto da incontinência tributária do governo. Depois, o deputado ficou sacudindo o papelucho que mantivera em mãos para indicar que a nova MP a ser assinada daí a pouco conservaria só a correção da Tabela do Imposto de Renda em 10% - o pretexto para a edição da anterior.

Pretexto, porque a "bondade" dispensava esse instrumento. Se a idéia fosse apenas tornar um tanto menos escandalosa a tunga do atraso da correção da Tabela do Imposto de Renda, conforme prometido às centrais sindicais, com grande espalhafato, pelo presidente Lula, bastaria um simples ato normativo da Receita. Fez-se a MP - baixada, por sinal, enquanto os brasileiros festejavam a virada do ano - exatamente para nela embutir mais uma série de assaltos ao contribuinte. Parece incrível que o Fisco e, mais ainda, o Ministério da Fazenda pudessem imaginar que o estratagema passaria despercebido.

Foi o surto inicial dessa cegueira que desdenha da capacidade de percepção e de resposta da sociedade, da mídia e, por extensão, dos políticos. Daí os grosseiros erros de cálculo do governo na tramitação da 232 na Câmara. Para começar, o Planalto supôs que o deputado Severino Cavalcanti, embora inimigo da MP, concordaria em retardar a sua inclusão na pauta de votações - e isso imediatamente depois de Lula tê-lo deixado em carne viva ao desmoralizar a sua bravata sobre a nomeação de um afilhado para o Ministério.

Em seguida, os luminares do governo conceberam o ardil de propor a substituição da medida por um projeto que reinstituiria a correção do IR e abrandaria, aqui e ali, as maldades patrocinadas pela Fazenda. Não contaram com a adesão de parcela suficiente da base aliada ao contrafogo da oposição, que requereu o desmembramento da MP para aprovar os 10% e rejeitar o resto. Tanto que, em duas sessões consecutivas, os líderes das bancadas governistas, teoricamente majoritárias, tiveram de lançar mão de um recurso típico das minorias - obstruir os trabalhos legislativos.

Mas nem todas essas trombadas convenceram os privados da visão a, pelo menos, se valerem de bengalas brancas. Assim como o deputado Chinaglia encenou o imaginário ato de grandeza de um governo que vai ao encontro da sociedade - quando foi obrigado a fazer precisamente o que a oposição tinha sugerido, só tratando, depois, de disfarçar o óbvio -, o ministro Palocci levou ao palco, para uma presumível platéia de sonsos, uma adaptação de A raposa e as uvas, de Esopo. Disse que o governo tinha votos para aprovar a MP, mas preferiu "promover o debate".

A imagem do principal responsável pelo sucesso da política econômica do governo Lula podia, como se diz, passar sem essa. Já bastava ter autorizado a Receita Federal a enxertar na MP da correção da Tabela do IR o aumento da carga tributária sobre o setor de serviços, à revelia das lideranças aliadas e sem informar o círculo íntimo do presidente. Com isso, incidentalmente, o seu colega e rival José Dirceu, da Casa Civil, sai ileso da mais fragorosa derrota do governo em seus 27 meses.

Resta desejar que o governo guarde do episódio o reconhecimento de algo que os seus membros gostavam de dizer nos tempos de oposição: o povo não é bobo.