Título: A ONU e o já sabido
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2005, Notas & Informações, p. A3

À s vezes temos a impressão de que os relatores da Organização das Nações Unidas (ONU), incumbidos de avaliar a situação dos países e regiões do mundo no tocante a variado menu de índices sociais, poupariam trabalho, tempo e recursos da organização internacional se se dedicassem mais à simples leitura dos editoriais e artigos publicados nos jornais de cada lugar, assim como dos discursos políticos costumeiramente divulgados nesses países - especialmente os oposicionistas. Isso porque, na melhor das hipóteses, as peças de avaliação desses relatores não passam de uma repetição do já sabido e insistentemente "martelado" - embora entendamos que esses servidores públicos internacionais precisem de justificativas para seus deslocamentos e bem remunerados serviços.

Os dois mais recentes relatórios da entidade sobre o Brasil confirmam essa impressão. O primeiro (obtido com exclusividade por este jornal, e publicado na quarta-feira), do argentino Leandro Despouy, tem por tema a situação da Justiça brasileira; o segundo, de Miloon Khotari, é relacionado às políticas de reforma agrária e de moradia, em curso no País. Diríamos que o primeiro relatório, apesar de sua marcante característica de chover no molhado, fere alguns pontos importantes de atravancamento de nosso Poder Judiciário, bem como de distorções crônicas que, há muito tempo, afetam o exercício do poder jurisdicional do Estado brasileiro. O segundo relatório, no entanto, extrapola seus próprios objetivos, ao demonstrar a intenção - sem muitas sutilezas - de dar lições de política econômica ao governo brasileiro.

Entre os 22 tópicos relacionados ao Judiciário há, pelo menos, 4 que merecem oportuno destaque: o primeiro é o da redução de recursos processuais para agilizar o sistema. Aí está um gargalo estrutural, ao qual se deve boa parte do emperramento de nossa Justiça - e nunca será demais repisar esse tema, quando se pensa em reforma do Judiciário. O segundo tópico relevante, nos parece, é o do "controle social dos cargos de confiança no Judiciário". Apesar de o relatório equivocar-se ao cobrar "concursos anônimos para ingresso na carreira de juiz" - porquanto estes já são realizados por meio de regras isentas de aferição de merecimento -, há, sem dúvida, vícios de nepotismo que de uma forma ou outra corroem a lisura do Poder Judiciário (tanto quanto dos outros Poderes).

Os "limites para o uso do sigilo em casos envolvendo juízes e políticos" fazem parte de tópico oportuníssimo, posto que o segredo de Justiça, originalmente destinado a proteger a privacidade das famílias em delicados processos judiciais, especialmente casos de separação com disputa de guarda de menores, se tornou uma blindagem à informação pública de irregularidades - e mesmo crimes - praticadas por magistrados, no que é sonegado à sociedade conhecimento do que lhe é de estrito interesse. O item que se refere à "prioridade para as crianças, inclusive com a criação de tribunais especializados e com o estabelecimento de Núcleos de Atenção à Infância" é também muito importante. Mas deveria ser complementado por aspectos relacionados à revisão da maioridade penal ou busca de meios para evitar os abusos de impunidade do menor infrator.

No relatório sobre moradia há um dado sem dúvida muito contundente: ao déficit de 7 milhões de casas para morar, soma-se o fato de um terço das moradias não possuir sistema adequado de saneamento. Provavelmente o relator da ONU obteve esses dados nos censos do IBGE. A partir deles, faz críticas à política de moradia do governo Lula, à reforma agrária em curso e, sobretudo, à política econômica vigente. Para o relator, o pacote do FMI e "as políticas financeiras conservadoras auto-impostas" afetaram a capacidade do governo de abordar as condições de moradia dos grupos mais vulneráveis. E dizendo o que seria, sem tirar nem pôr, um típico pronunciamento emanado de tribuna oposicionista, o relator da ONU pontifica: "A credibilidade internacional de que o presidente Lula e seu governo desfrutam atualmente deveria possibilitar a redução do objetivo superavitário do orçamento, o que liberaria recursos para satisfazer os direitos humanos, inclusive o da moradia para os mais pobres."

Realmente, mais oposicionista do que isso só se os relatores da ONU participassem de nossos programas eleitorais...