Título: No Brasil dos muito vivos, há 1 milhão de aposentados mortos
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/04/2005, Nacional, p. A9

Os relatos mais recentes sobre a fraude previdenciária nacional deixam claro, pelo número de beneficiados, que há no País mais vivos - no sentido comportamental da palavra - do que mortos. Mais do que isso, o que revela um recente estudo da Previdência é que, se para ser vivo for preciso passar por morto, muda-se o registro - e, aí, para felicidade geral, passam a existir mais mortos do que vivos. Essa lição de vida está em pesquisa divulgada no final de 2003, em que se compara o total de benefícios pagos. Dos 70 anos em diante, há muito mais benefícios do que gente viva. Na ponta da terceira idade, há 119% mais benefícios do que pessoas entre 95 e 99 anos e 306% mais acima dos 100 anos. Há um pequeno universo de cidadãos com mais de um benefício - por exemplo, uma pensão herdada e uma aposentadoria - mas, garantem os técnicos, isso de modo algum explica as disparidades.

À parte esse estudo, um experiente sindicalista, o presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, João Batista Inocentini, calcula (com outros dados do próprio governo), em pouco mais de 1 milhão o total de benefícios que a Previdência destina, todo mês, a brasileiros que já morreram. O número refere-se aos beneficiários de 70 anos em diante.

O Ministério da Previdência explica que isso ocorre porque "o sistema" - quer dizer, o conjunto de programas dos computadores da Dataprev, que cuida do gigantesco banco de dados do Ministério da Previdência Social - não tem como dar baixa, pois é preciso evitar erros por causa de homônimos ou falhas de informação.

Além disso, "muitos óbitos informados pelos cartórios não provocam a eliminação dos benefícios pela inexistência de dados cadastrais suficientes que permitam a associação do óbito ao benefício", como relata outro estudo da Previdência. Inocentini tem, a respeito disso tudo, uma suspeita. "Imagino que, depois de um certo tempo, essas contas inativas são transferidas para alguma outra área, dentro do sistema. Ninguém sabe qual é, nem para onde esse dinheiro vai."

Esse milhão de aposentados mortos dá um terço dos 3 milhões de benefícios irregulares já detectados pelo governo no atual recadastramento, que faz cruzamentos de dados da Previdência com outros da Dataprev, do SUS, da Receita Federal, do Tribunal Superior Eleitoral e até do Incra. Para se ter idéia do tamanho do estrago, quando aqueles 3 milhões de benefícios forem cancelados, a Previdência economizará R$ 15,6 bilhões, metade de seu déficit anual. Mais do que falta de verbas, o abismo em que caiu a Previdência chama-se incompetência.

CASOS

Familiarizados com essa realidade, os funcionários do posto de atendimento de Padre Miguel, no Rio, não se surpreenderam quando José Francisco dos Santos, de 85 anos, apareceu no guichê para pegar sua aposentadoria. Na listagem do INSS, José Francisco estava morto e o pagamento tinha sido suspenso. Viúvo, pai de seis filhos, ele foi depois informado de que alguém com nome igual ao seu havia morrido. Tudo esclarecido, então? De forma alguma. José Francisco teve de voltar para casa, munir-se de identidade, CPF e atestado de residência, reapresentá-los no posto e aguardar a burocracia para voltar a receber.

Inocentini e seu sindicato estão acompanhando, no momento, outro caso estranho no Rio: o de um aposentado que morreu em março de 2004, mas o depósito em sua conta, de R$ 1.500, continuou a ser feito. Cinco meses depois, ele - ou, sabe-se lá quem - pediu um empréstimo de R$ 12 mil.

Outro caso envolveu um aposentado de Cuiabá que teve o benefício cortado há dois ou três meses. "Descobriu-se que o dinheiro passou para a conta de outra pessoa, com o mesmo nome, mas no Rio", conta Inocentini. "Essas falhas todas, somadas, devem custar uns R$ 30 bilhões por ano."

Um trabalho do ministério chegou a mencionar 20, 7 mil benefícios pagos a cidadãos falecidos, mas no documento admitia que "há motivos para crer que o número de benefícios indevidos é muito maior". O mais provável é que dificuldades econômicas levem muitas famílias a não informar a morte dos beneficiários, o que se completa com a incompetência, e a inapetência, das autoridades.

Inocentini se diz preocupado com os primeiros passos do novo ministro da área, Romero Jucá. "Fiquei surpreso com esse barulho que ele fez sobre auxílio-doença. Aí só tem peixe pequeno, temos é de pegar peixe graúdo. E para isso tem é de levar adiante, e fazer bem feito, o recadastramento. Só assim se pega peixe graúdo."