Título: Sem cumprimento das promessas, a democracia vai correr perigo
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/04/2005, Nacional, p. A10

As lições do jurista italiano Norberto Bobbio servem como advertência ao Brasil e à América do Sul, lembra o professor e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer: a democracia chegou, consolidou-se, mas os governos não estão cumprindo o que Bobbio chamava de "promessas da democracia". Para Lafer, o governo Lula não tem se preocupado com uma concepção de gestão madura e eficaz, não cumpre as promessas, o que ameaça a governabilidade, e põe em perigo a própria democracia. Para muitos, o maior pensador político contemporâneo, Bobbio foi particularmente lembrado esta semana com a inauguração, em São Paulo, do Centro de Estudos Norberto Bobbio. Um seminário - do qual participou Lafer, que foi seu amigo e intérprete - reavivou suas idéias, que promoveram a valorização dos direitos humanos e, entre nós, inspiraram o processo de redemocratização.

Lafer observa que o fato de a democracia ter antecipado promessas que não consegue cumprir pode levar ao "qualunquismo", conceito que Bobbio criou para expressar a descrença e a desesperança na política e nos seus líderes, que leva os eleitores a não mais diferenciar os partidos, líderes e propostas, e a votar "em qualquer um". Para Lafer, Lula errou quando montou seu governo a partir da ala sindicalista do PT, que não tem experiência de gestão nem formação apropriada, e quando "aparelhou o Estado".

Ele lamenta a qualidade da gestão no governo Lula: "A expectativa que se tinha quando o PT chegou ao governo, sobretudo nas áreas sociais, era que tivesse uma capacidade de gestão. Não teve. Não está tendo". Ele está preocupado com o que chama de "uma série de indicações de tendência autoritária do governo", ressalvando que essas tendências têm sido bloqueadas pela sociedade civil, "o que mostra, enfim, a vitalidade da democracia e das instituições, para as quais é indispensável que ela continue vigilante".

Como Bobbio equacionou a questão da esquerda no poder? O que é a idéia, criada por ele, do socialismo liberal?

Nos anos 70, Bobbio escreveu um livro chamado Quale Socialismo?, no qual diz que não há uma doutrina do direito e do estado na reflexão marxista, que só pensou sobre o partido, seja o de massas (o partido alemão), seja o de vanguarda (o partido leninista). Os marxistas sempre consideraram que o exercício do poder seria natural porque a vanguarda governaria em nome de uma classe de vocação universal, que é o proletariado. Estava, portanto, assegurada a qualidade do governo. Bobbio mostrou que isso não é verdade porque quem governa não resolve o problema do povo e, por isso, é preciso haver democracia, como salvaguarda da liberdade. Ao mesmo tempo, ele se deu conta de que o tema da desigualdade, no plano interno e mundial, criava situações inaceitáveis. Daí surgiu a idéia que conciliou um socialismo preocupado com a igualdade e com a liberdade. Para ele, essa convergência era possível porque a noção de liberdade significava mais liberdade para todos e menos privilégios. Mais liberdade significa acesso a oportunidades.

A redemocratização brasileira uniu da esquerda ao centro esclarecido numa crença engajada nos valores da democracia, embarcando nas idéias de Bobbio. Hoje a democracia ainda suscita os mesmos valores?

Na década de 70 Bobbio virou uma referência importante para nós porque a esquerda brasileira, depois do insucesso da luta armada, se deu conta de que era preciso pensar os temas da democracia. Esse movimento que passou a se preocupar com o regime democrático uniu da esquerda ao centro, até os liberais de ponta. Todos viram, na busca que Bobbio fazia da compatibilização de igualdade e liberdade, um ponto de referência muito importante. O valor da democracia é importante ainda hoje e está razoavelmente impregnado na sociedade brasileira. A Constituição de 1988 é um exemplo disso, com o tanto de incoerência que contém.

No que a redemocratização falhou?

Bobbio chama a atenção para as promessas não cumpridas da democracia. Nós vivemos, no Brasil e na América Latina, essa sensação das promessas não cumpridas da democracia, os objetivos que se imaginava poder alcançar e que efetivamente não foram atingidos, em parte porque o poder é complicado, em parte porque as limitações dos países são significativas .

O senhor tem um diagnóstico do que está indo mal?

A democracia, no mundo contemporâneo, vai além daquilo que eram as clássicas dimensões das instituições políticas - Executivo, Legislativo, Judiciário e partidos políticos. No Brasil, hoje, a sociedade civil tem uma participação muito ampla, com as organizações não-governamentais e os movimentos sociais. O PT foi resultado desse tipo de participação que a redemocratização brasileira operou. A própria eleição do presidente Lula é uma expressão dos processos de democratização da sociedade brasileira. Mas é preciso estar atento aos problemas da governabilidade, para aquilo que vai atender ao bem-estar geral da população. Por isso é que a noção de gestão, à qual o presidente Fernando Henrique deu uma atenção especial, é importante.

O senhor quer dizer que o governo Lula não dá a mesma atenção à questão da gestão?

Há uma defasagem expressiva entre a concepção de gestão que tinha o governo de Fernando Henrique e a que verificamos hoje, na administração do PT e do presidente Lula.

As promessas sociais não cumpridas não podem conduzir ao que Bobbio chamava de "qualunquismo", a descrença com a democracia, o desinteresse do cidadão com a política?

Corremos o risco. Mas a quem tem convicção democrática, como é o meu caso, cabe batalhar para que não viceje esse sentimento, porque eu tenho convicção profunda sobre o que foi a experiência do regime autoritário, os seus equívocos e os seus desastres. Acho que nos cabe, no exercício de uma função de cidadania, lutar pelos valores da democracia, repetindo o que Bobbio fez no decorrer de toda sua criativa vida.

O PT no governo tem sido essencialmente socialista liberal. Mas parece ter mais empenho em cumprir o receituário liberal do que as promessas sociais. Por quê?

O governo Fernando Henrique - e eu falo com a suspeição de quem foi colaborador dele, que hoje integra essa grande família política da qual ele é uma grande expressão - se preocupou muito com gestão, coisas como responsabilidade fiscal, reforma do Estado, um Ministério da Saúde eficiente, um Ministério da Educação voltado para os desafios da educação básica. O presidente Fernando Henrique tinha muita clareza em combinar as medidas macroeconômicas com as preocupações social-democráticas nas quais os indicadores subseqüentes nas áreas de saúde e educação são provas eloqüentes. O PT tem três grandes correntes: a dos sindicalistas, a da esquerda católica e a dos intelectuais que sempre se dedicaram à causa do partido. Minha percepção, olhando a composição do governo, é que temos um predomínio dos sindicalistas, pouca presença dos intelectuais clássicos e alguma coisa da esquerda católica. A expectativa que se tinha, quando o PT chegou ao governo, sobretudo nas áreas sociais, era que tivesse uma capacidade de gestão compatível com aquilo que era a sua mensagem. Não teve. Não está tendo.

E não está tendo por quê?

Está um pouco ligado ao "aparelhamento do Estado", à idéia de trazer, para gerir o Estado, pessoas que não têm nem a experiência, nem a formação apropriada. Em segundo lugar, para lembrar Bobbio, cito um pouco daquilo que ele mencionou criticamente em Quale Socialismo?: se essas pessoas são boas e foram criadas na luta, por definição serão capazes de uma boa gestão. Não estão sendo.

Uma das idéias centrais da obra de Bobbio é a transparência dos governos. Como o senhor vê as recaídas autoritárias que o atual governo teve e que a sociedade rejeitou?

Uma das contribuições teóricas mais importantes de Bobbio é a idéia da transparência - o poder deve ser visível e deve ser exercido em público, com o conhecimento de todos, deve ter um elemento de moralidade a sustentá-lo. A sensação que eu tenho a respeito dos movimentos de esquerda não é esta. Claro: a noção do partido único é a idéia das células, a estrutura básica de poder dos regimes totalitários. Como dizia Hannah Arendt (filósofa e cientista política), funciona como a estrutura de uma cebola: o que é externo manda menos, o que é cada vez mais interno manda mais. A minha preocupação é que tem havido uma série de indicações de tendência autoritária por parte do governo, que têm sido controladas pelas manifestações da sociedade civil, o que mostra a vitalidade da democracia e das instituições, para as quais é indispensável que ela continue vigilante.

O senhor acha que o atual governo trabalha mal com o dissenso ou processa mal a informação?

Na nossa sociedade, você recebe muita informação e precisa saber processar isso. Processar e saber hierarquizar as informações importantes é uma qualidade de gestão e uma dimensão imprescindível da governança democrática. Se o atual governo tem dificuldade de processar o dissenso, não está atento a essa exigência necessária para sua própria mudança. A oposição que o governo tem hoje é muito menos contundente, muito menos desqualificadora do que a oposição que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso enfrentou. No entanto, o governo Fernando Henrique lidou com o dissenso dentro das regras da democracia - e lidou bem.

E essa repetição, pelo que se vê, não é só no Brasil?

A recente mudança do Código Penal da Venezuela, com a criminalização do "desacato à autoridade", é uma clara tentativa de reduzir os espaços de liberdade e de crítica. Tendo sido ministro, eu sei que a crítica às vezes é injusta e incomoda. Mas é indispensável. A propósito, Bobbio disse: "Aprendi a respeitar as idéias dos outros, a conter-me diante dos segredos de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar." E fez uma confissão: "Detesto os fanáticos com toda convicção."