Título: Incidente reacende polêmica com a Marinha
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/04/2005, Vida &, p. A22

À primeira vista, o Saco do Funil já parece recuperado das queimaduras deixadas pelo incêndio de dezembro. Por baixo do novo manto verde de capim, entretanto, estão cicatrizes ambientais e sociais cuja regeneração provará ser um processo muito mais difícil. O incidente fez reascender a polêmica sobre o uso do Arquipélago dos Alcatrazes pela Marinha, que, ao mesmo tempo em que ajuda a proteger as ilhas pelo controle da navegação, utiliza-as como alvo para a prática de tiro de canhões. A causa do incêndio ainda está sendo periciada pela Polícia Federal, mas a principal suspeita é de que o fogo tenha sido iniciado pela fagulha do impacto de um projétil durante um exercício. Um risco para o qual pesquisadores e ambientalistas vêm alertando há muitos anos, apesar de a Marinha não utilizar mais cargas explosivas - apenas projéteis carregados de areia.

O arquipélago é utilizado para o aferimento da mira dos canhões dos navios de guerra. Há vários alvos pintados no paredão de rocha do Saco do Funil e em duas lajes ao largo. Durante os exercícios, realizados entre sete e dez vezes ao ano, um observador registra o local do impacto e repassa as informações aos navios para que os canhões sejam calibrados.

O posicionamento da Marinha, que tem a posse legal dos Alcatrazes, é que as atividades de tiro não interferem na preservação da biodiversidade do arquipélago. A área dos alvos ocupa apenas 6% da área da ilha e está fora da Estação Ecológica Tupinambás e da área dos ninhais de aves. Pelo contrário, a corporação diz que garante a proteção ambiental do arquipélago pela proibição do acesso e a fiscalização da navegação.

Os biólogos discordam. "São atividades completamente incompatíveis", diz o biólogo Fausto Pires de Campos, coordenador do Projeto Alcatrazes da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro e analista ambiental do Instituto Florestal. A biodiversidade do arquipélago, segundo Campos, é muito rica e muito frágil para suportar esse tipo de atividade. "Ou o conhecimento de ecologia deles é precário ou estão sendo muito cínicos."

Além das espécies mais raras e endêmicas, como as furtivas rãs, o arquipélago é habitado por milhares de famílias de atobás, fragatas e gaivotões, que planam graciosamente por todos os lados e criam um movimento contínuo de vida ao redor das ilhas. Os dois primeiros estão entrando agora no seu pico de reprodução.

MULTA

Em razão do incêndio, o Ibama multou a Marinha em R$ 1,05 milhão pela falta de licenciamento para prática de atividades degradadoras nos arredores de uma unidade de conservação e pelos prejuízos indiretos causados à biodiversidade da estação ecológica. A Marinha vai recorrer.

A solução proposta pela Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro é a transformação de todo o arquipélago em um parque nacional ou estadual, que proiba a prática de tiro da Marinha e permita a visitação do público por meio de atividades ecologicamente sustentáveis. Já a proposta do Ibama, mais amena, é transformá-lo em um refúgio de vida silvestre, o que também proibiria o tiro, mas não exigiria a desapropriação do arquipélago, de posse da Marinha. "Não queremos entrar em choque com a Marinha. Queremos tê-la como parceira", diz o chefe da Estação Ecológica Tupinambás, Osmar Corrêa.