Título: Vida nos Alcatrazes resiste após o fogo
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/04/2005, Vida &, p. A22

ILHA DOS ALCATRAZES - Quatro meses após o incêndio que consumiu quase 20 hectares da Ilha dos Alcatrazes, no litoral norte de São Paulo, o arquipélago está prestes a ganhar o registro oficial de mais um inquilino. Uma expedição científica de três dias, concluída anteontem, resultou na coleta de mais quatro indivíduos de uma nova espécie de rã, do gênero Cycloramphus. Até onde se sabe, ela só existe em uma baía da ilha, conhecida como Saco do Funil. É justamente a área que foi mais atingida pelo fogo e onde os navios da Marinha costumam fazer prática de tiro, o que deixava os cientistas receosos quanto à sobrevivência da espécie, antes mesmo que ela pudesse ser conhecida. Com a coleta dos novos exemplares, entretanto, os pesquisadores terão, finalmente, informações suficientes para concluir a descrição da rã, de modo que ela poderá ser oficialmente integrada à biodiversidade do arquipélago. "Essa espécie não existe para o mundo científico, ainda", disse a bióloga Cinthia Brasileiro, pós-doutoranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Projeto Herpetofauna de Alcatrazes. Desde que ela foi acidentalmente descoberta em 2002, apenas seis exemplares haviam sido coletados. Imagina-se que a rã, assim como tantos outros animais e plantas do arquipélago, tenha se diferenciado de uma espécie do continente, depois que as ilhas se isolaram dele milhares de anos atrás. Por isso muitas das espécies de Alcatrazes são únicas do arquipélago. Só existem ali. É o caso da jararaca-de-alcatrazes e de outra espécie de rã, a Scinax alcatraz, que passa a vida dentro de uma bromélia.

Uma vez descrita e devidamente batizada, a expectativa é de que a nova Cycloramphus seja imediatamente incluída na lista de espécies ameaçadas. "É uma população muito pequena dentro de uma área também pequena, que pode ser extinta facilmente. Não há para onde fugir", diz Cinthia. O fato de a expedição ter encontrado novos exemplares da rã, segundo ela, não significa que o fogo não tenha colocado a espécie em risco. "A população pode ficar tão pequena que a sobrevivência dela se torna inviável a longo prazo."

Os quatro espécimes - dois machos e duas fêmeas - foram coletados de dentro de fendas nas rochas do Saco do Funil, num trecho de mata adjacente à área do incêndio. "Não sabemos quase nada sobre a espécie", conta Cinthia. "Achávamos que ela só podia existir junto à água, mas encontramos indivíduos em frestas secas também."

VIDA ABUNDANTE

A expedição, acompanhada pelo Estado, foi a primeira desde o incêndio, ocorrido em dezembro. Participaram 20 pesquisadores de várias especialidades, incluindo répteis, anfíbios, aves e mamíferos marinhos. Após um fim de semana de Páscoa chuvoso no litoral, a equipe foi presenteada com três dias de sol abundante e mar tranqüilo como uma piscina. Sem falar na boa-vontade dos animais marinhos e terrestres, que não demonstraram nenhuma timidez. Não faltaram até mesmo observações raras de baleias-de-Bryde e golfinhos-de-dentes-rugosos.

Quem também teve muito trabalho foi a equipe do Projeto Tamar, que em duas noites de mergulho registrou 55 tartarugas-marinhas. Capturadas manualmente e levadas para o barco, cada uma foi medida, pesada e recebeu uma anilha de identificação, antes de ser devolvida ao mar. Segundo o coordenador técnico do Tamar em Ubatuba, José Henrique Becker, o arquipélago serve como importante área de alimentação para tartarugas jovens. O plano é que as anilhas ajudem a identificar suas rotas migratórias pelo Atlântico.

Desde 2000, cerca de 300 tartarugas já foram marcadas nos Alcatrazes. A maioria, tartarugas-verdes. Algumas já reapareceram na Bahia, ao norte, e outras, no Uruguai, ao sul. Além de outras que ficaram por ali mesmo. "O ciclo de vida das tartarugas ainda é um grande ponto de interrogação", reconhece Becker.