Título: Lição do que não se deve fazer
Autor: Suely Caldas, Luciana Nunes Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/04/2005, Aliás, p. J1

De seu apartamento em Ipanema, zona sul carioca, o recifense Evaldo Cabral de Mello, escritor, historiador e diplomata aposentado, acompanha a volta do nepotismo ao noticiário político. E as notícias não param, ao contrário, vão se acumulando num enredo lamentável: o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), tem seis parentes empregados sem concurso na Casa que comanda, sendo que a filha e a neta estão lotadas em seu próprio gabinete. Severino acha tudo muito natural. Outros 96 deputados federais da atual legislatura deram emprego ao cônjuge, um festival de esposas e maridos contratados sem concurso público. O caso chega ao Tribunal de Contas da União e o ministro-relator, Lincoln Magalhães da Rocha, diz que não se pode "discriminar a família legalmente constituída, um dos grandes pilares da sociedade". Aos 69 anos, Evaldo, um dos mais importantes pesquisadores da História brasileira, constata: "Nepotismo sempre existiu no Brasil, mas agora se perdeu totalmente a compostura." Para ele, o conterrâneo Severino Cavalcanti foi um "energúmeno" ao defender abertamente os familiares que operam no Congresso, mas acabou prestando um serviço ao País. "A prática não vai acabar, porém agora as pessoas hão de ter mais cuidado." O vício de empregar parentes, para Evaldo, está ligado ao fato de que o setor público e, em especial, a política, recebe o "rebotalho" das famílias. "A política é o emprego natural dos que não deram certo. E são esses que empregam parentes", lamenta.

Nesta entrevista para o caderno Aliás, Evaldo Cabral de Mello revelou um episódio que veste exemplarmente o nepotismo além da esfera pública. Irmão de João Cabral de Mello Neto, que morreu em outubro de 1999, foi sondado para se candidatar à vaga do poeta na Academia Brasileira de Letras. Assim, a idéia do "deixar tudo em família" seria aplicada à imortalidade. Evaldo Cabral obteve promessas de votos, se disputasse a cadeira deixada pelo irmão, mas achou tudo um completo absurdo.

O senhor não gosta do termo identidade nacional, mas o nepotismo é uma marca brasileira?

O nepotismo é um elemento fundamental da cultura ou da nossa incultura política. É um tipo de prática que veio de Portugal, mas no Brasil tendeu a se acentuar devido à formação rural da família brasileira. Todos esses fenômenos de nepotismo que você encontra hoje são sobrevivência de uma sociedade tradicional no meio de uma sociedade que quer se modernizar.

O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, emprega parentes e não vê problema nessa prática.

O presidente da Câmara fez essa defesa aberta do nepotismo, o que é um absurdo. Ele teve a ingenuidade de declarar o que quase todo mundo faz no Brasil e não declara. Teve certa honestidade, mas o conteúdo da defesa é condenável. Veja que há quase cem parlamentares com mulher ou marido empregado em gabinetes e setores do Congresso. No Judiciário, bem sabemos, a prática se repete de norte a sul. O que mais escapa é o Executivo, porque parte dos quadros é selecionada por competência, e então a coisa se atenua. É muito difícil resolver esse problema.

O que move o ocupante do cargo público a empregar os parentes?

Normalmente, a pessoa que emprega o parente no serviço público está sob pressão da própria família. Dentro dos valores tradicionais, o parente importante que chega a uma posição de poder e não ajuda primos, cunhados, irmãos é um traidor.

Eles não estão pensando também na subsistência da própria família?

Claro, no momento em que empregam os parentes, provavelmente uma parte da responsabilidade financeira por eles se alivia. Nepotismo é um problema antigo, mas houve uma mudança de perspectiva. A opinião pública passou a se sensibilizar pelo assunto, antes se sensibilizava menos.

O nepotismo sempre aconteceu nas dimensões que se vê atualmente?

É provável que a prática tenha piorado com a expansão do Estado brasileiro. Há 50 ou 60 anos o Estado empregava muito menos gente. Quando eu era menino, já se falava em nepotismo, mas ocorria com muito mais compostura por parte das pessoas que cediam a ele. Getúlio Vargas não empregou filhos no governo e foi o homem que mais mandou no Brasil no século 20. Tinha o genro, mas Amaral Peixoto já era produto de uma oligarquia fluminense. O Brasil se tornou um País sem compostura não só nisso, mas em várias outras coisas, devido à destruição de uma série de valores.

Qual é a diferença do nepotismo do passado para o de hoje?

Antigamente, um pai de família que tinha uma certa posição num Estado da Federação procuraria colocar seu filho, mas jamais o colocaria sob as suas ordens. Sempre buscaria um amigo, que o colocaria noutra repartição. Hoje as pessoas nomeiam diretamente para suas ordens. Eu me lembro que no Itamaraty, como há muitos filhos de diplomatas, há o cuidado de uma regra que proíbe o filho de servir com o pai no mesmo posto.

Existe na diplomacia o pai que pede pelo filho a um colega. Isso é nepotismo?

A origem da palavra nepotismo, que vem de nepote (sobrinho), era o hábito que tinham os papas de fazer cardeais os sobrinhos, às vezes filhos naturais que eles chamavam de sobrinhos. Talvez você se interessar por um filho e procurar ajuda para determinar a sorte dele seja uma forma atenuada de nepotismo. Também não se pode aspirar a que o Brasil terá uma sociedade tão impessoal nas relações que um pai não se interesse pelo filho - isso é impossível.

O senhor citou Getúlio Vargas. Houve presidentes que empregassem parentes?

Não fui favorável ao regime que acabou, mas os militares tinham um pouco mais de pudor em relação aos civis de hoje. Geisel teve uma filha que trabalhava com ele, mas ninguém nunca levantou esse problema, como também não se levantou com a filha de Fernando Henrique Cardoso que trabalhava com ele, nem seria direito levantar. Era uma secretária particular. Que a pessoa empregue uma filha para assuntos de natureza pessoal é uma coisa. Tancredo Neves ia empregar o filho e o sobrinho. Outra coisa é você pôr na Câmara ou no Senado, em funções de assessoria, que exigem conhecimento especializado, parentes que não têm competência para isso.

Há solução para os desvios?

Se este debate agora sobre o assunto permitir que se estabeleçam algumas regras básicas, já é um grande passo. A primeira: filho nenhum pode servir sob a autoridade direta do pai.

O nepotismo é um fenômeno mais do Nordeste do que do Sul e do Sudeste?

Isso não é no Nordeste só, o que acontece é que Severino é de Pernambuco. Em todas as áreas tradicionais do País isso ocorre. No Sudeste e no Sul, por causa da presença das grandes cidades, há uma sensibilidade maior para esse problema. No interior de Minas Gerais ou do Estado do Rio, não vai sensibilizar ninguém.

Os políticos com poder têm mais chances de conseguir ocupação para os filhos do que um pai que não tem poder. Qual é o limite para o tráfico de influência?

Se o tráfico de influência for dentro do Estado, da administração pública, deveria haver um princípio de conduta, para ajudar a resolver o problema. Se é em relação a negócios privados, é difícil regulamentar. Mas a empresa privada está num mercado competitivo. Ela sabe que, para sobreviver, precisa empregar gente competente. Não basta ser parente.

Por que se imagina que, no poder público, há sempre lugar para mais um?

O serviço público e a carreira política no Brasil são desaguadouros dos incompetentes. Veja os Maluf. O mais competente para as empresas era o Roberto, e foi tratar da Eucatex. Como tinha outro que não se sabia bem para o que dava, o Paulo, foi para o serviço público. Se a senhora é uma mãe de família milionária e quer conservar sua fortuna, escolherá o filho mais competente. O que não der para nada vai ser político. A escolha dos quadros políticos no Brasil é o inverso do que deveria ser. Claro que há exceções. Estou pensando na Câmara, mas veja o próprio Itamar Franco. É um engenheiro fracassado. Tinha uma empresa de construção em Juiz de Fora que não foi para a frente. A política é o emprego natural dos que não deram certo. É um problema maior que o nepotismo. É uma perversão da sociedade brasileira, que escolhe sempre o pior. E, quando escolher o pior, esse pior vai nomear parentes.

No setor privado, os empreendimentos familiares estão se extinguindo. O que prevalece é a competência. O que vai acontecer no futuro?

Na medida que isso for acabando no setor privado, a tendência é jogar o rebotalho para cima do setor público.

Os países latinos são mais nepotistas?

São, porque a cultura católica é bem mais familista e desenvolve menos a independência individual. Não é como os países protestantes, em que ambição pessoal se sobrepõe à família. Essa é uma herança católica, começou lá no Vaticano.

A reação da população diante da defesa aberta do nepotismo feita pelo deputado Severino Cavalcanti é benéfica?

Eu diria que Severino fez um bem sem querer. Ele se mostrou tão energúmeno ao se lançar nessa defesa pública do nepotismo que agora as pessoas vão ter mais cuidado. As pessoas vão se comportar com um pouco mais de cuidado, mas a engrenagem vai continuar funcionando. No Brasil somos todos cúmplices. Nos indignamos até o momento em que o assunto envolve o interesse de um parente. Há hipocrisia por parte dos críticos e dos criticados.

O senhor é otimista em relação ao futuro?

Não tenho nenhum otimismo. O nível educacional neste país só tem caído. O nível cultural desceu muito. Fico impressionado com a ignorância das autoridades brasileiras em relação à história brasileira. Veja a deterioração da nossa cultura: quando eu era menino, o brasileiro de posses queria ir para a Europa. Hoje, o sonho do brasileiro de posses é Miami. É muito melancólico.

Como o senhor definiria o Estado brasileiro?

É o peso morto. Incompetente, inerte, empregatício. Vocês não fazem idéia do que é o serviço público brasileiro. Não é só a burocracia, é o medo de tomar decisões. Juscelino Kubitschek foi um gênio e só conseguiu fazer o programa de metas porque criou uma burocracia à parte e esqueceu o resto da administração. Se não tivesse feito isso, até hoje estariam construindo Brasília. A primeira coisa que faz um funcionário de um ministério é sabotar a ordem do ministro. Para o funcionário, o ministro é apenas mais um. Daqui a pouco vai embora e vem outro. O brasileiro não tem o senso do Estado, exatamente por causa da nossa formação familista.

Que visão o brasileiro tem do Estado?

Para o brasileiro rico, o Estado é a burra do Tesouro que ele vai assaltar para arrancar a verba, o dinheiro. Para a classe média, a burocracia é o emprego. E o povo só quer a assistência. Não quer reforma do sistema político, isso é reivindicação da classe média para cima, nas grandes cidades. O brasileiro não tem noção do Estado, tem noção da família. O Estado é o quintal de que ele se serve para suas necessidades particulares.

Como o senhor definiria a categoria de parlamentares chamada de "baixo clero"?

É uma boa expressão. Baixo clero existe em qualquer profissão no Brasil. É um sujeito sem sofisticação intelectual, é o caipira. Na Câmara, eles são esnobados. Veja a vitória de Severino Cavalcanti. O que aconteceu foi inconcebível. O presidente da Câmara tinha de ser paulista, não podia nem ser mineiro. O governo criou um problema e acabou perdendo a eleição. Tropeçou nas próprias pernas. Lula é mais inteligente que eles todos, é mais prático, mais objetivo.

A escritora Zélia Gattai, viúva de Jorge Amado, foi eleita para a vaga do marido na Academia Brasileira de Letras. Houve nepotismo nesse episódio?

Quando meu irmão (o poeta João Cabral de Mello Neto) morreu, fui sondado para me candidatar à vaga dele na Academia. Eu disse: "Isso é escandaloso! Como vou me candidatar à vaga do meu irmão?". Tenho um mínimo de brio para querer conquistar posições como essa com meus próprios méritos. Além disso, eu nunca aspirei ocupar uma vaga da Academia.