Título: Diplomacia quadricéfala
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/04/2005, Notas e Informações, p. A3

É assim que a política externa brasileira do governo Lula representa, como disse o presidente na semana passada, "um avanço maior do que o que foi conquistado nos últimos 40 ou 50 anos". Para começar, nos últimos 40 ou 50 anos o Brasil tinha apenas um ministro de Relações Exteriores. Agora tem quatro: o chanceler propriamente dito, Celso Amorim, cujo poder de decisão parece ser inversamente proporcional ao grau hierárquico do cargo que ocupa; o seu sub, Samuel Pinheiro Guimarães, que soma à condição de secretário-geral do Itamaraty (o que lhe permitiu construir numa reputada ilha de excelência no serviço público um feudo de seus preconceitos ideológicos) a de ideólogo da diplomacia brasileira, exumando a anacrônica orientação terceiro-mundista dos anos Geisel; o assessor internacional do Planalto, Marco Aurélio Garcia, que circula pelo mundo, fazendo, na melhor das hipóteses, o que os profissionais do ministério decerto fariam com vantagem; e, desde há pouco, o revigorado ministro da reeleição José Dirceu, o admirador e amigo do ditador cubano Fidel Castro que surpreendeu ao reunir-se em Washington, no começo de março, com a secretária de Estado, Condoleezza Rice, para "agendar" sua visita ao Brasil. Além da estapafúrdia condução quadricéfala de uma das áreas vitais não para este ou aquele governo, mas para o Estado nacional, supõe-se que se deva também contabilizar, como prova do avanço sem precedentes em meio século alardeado por Lula, as suas presumivelmente exaustivas viagens ao exterior, que lhe dão a oportunidade de, a cada vez, voltar ao País de alma lavada e - que ninguém nos ouça - de mãos abanando. E tão avançada, tão refinadamente engenhosa é a nova política externa do País que, sem mais aquela, o mesmo ministro da Casa Civil (ou será da Casa de Rio Branco?) que acertou a vinda ao Brasil da titular da diplomacia americana voou para Caracas na véspera da sua chegada a Brasília, onde ela desembarcou ontem e de onde sai hoje, obrigando-se o Super-Dirceu - como passou a ser chamado o Super-Zé dos tempos de presidente do PT - a voltar às pressas para não se desencontrar de sua nova interlocutora. Que súbita e transcendental metamorfose terá ocorrido na política hemisférica a ponto de exigir do ministro tamanho sacrifício em hora inoportuna? Que teria ele a dizer ou a ouvir do presidente venezuelano Hugo Chávez que não pudesse esperar 48 horas ou se dar pelo telefone?

Naturalmente, as especulações correram soltas. Teria a viagem sido determinada pela decisão de Chávez, domingo, de romper o antigo acordo de cooperação militar entre a Venezuela e os Estados Unidos? E terá ele pedido ao brasileiro que viesse correndo receber uma mensagem de última hora para Condoleezza Rice? Acolher essa hipótese, porém, significaria endossar a fantasia do presidente Lula de que pode, de comum acordo com as partes, fazer a ponte entre Washington e Caracas, precisamente quando as relações entre os dois governos se deterioram a olhos vistos. Tanto assim que se presume que o tema Chávez, ou melhor, o que os americanos consideram ser a complacência brasileira diante dos desmandos do coronel, esteja no topo da agenda brasiliense de Condoleezza. Outra suposição foi a de que a intrigante carreira de Dirceu teria que ver com Cuba, a segunda pátria do ministro. Mas o que estaria ocorrendo ou em vias de ocorrer na ilha de Fidel que exigisse a presença imediata de Dirceu não em Havana, mas em Caracas? Terá chegado ao Planalto, ou ao Palácio Miraflores, uma arqui-sigilosa notícia de que a chamada solução biológica do problema cubano é iminente?

O mais provável é que tudo não passe de mais uma operação de marketing, o forte do Planalto. Nada melhor que brasileiros e estrangeiros - e estrangeiros do calibre da número um do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América - se apercebam do papel crescentemente decisivo desempenhado pelo governo Lula na arena internacional, a prova dos noves do formidável avanço proclamado pelo presidente em matéria de política externa. Mas o mundo não é bem aquele que enxergam os seus olhos e os dos seus quatro ministros do exterior. Por isso, se não forem resgatados logo por um choque de realidade, continuarão sofrendo derrotas diplomáticas, correndo o risco de ter na disputa de um lugar permanente no Conselho de Segurança a mais decepcionante da série.