Título: 'Parceiros¿ da Justiça
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/04/2005, Notas e Informações, p. A3

S em recursos suficientes para promover novos investimentos e para custear sua pesada máquina administrativa, o Judiciário brasileiro vem apelando para diferentes estratégias para contornar suas dificuldades financeiras. Uma delas é negociar os depósitos judiciais com instituições financeiras públicas e privadas, em troca de vantagens que vão da aquisição de computadores e financiamento de serviços de informática até o pagamento de aluguéis e a construção de novas sedes.

Os depósitos judiciais são constituídos por quantias que os juízes exigem para garantir a execução de uma decisão futura e, também, pelo valor que as partes são obrigadas a depositar em juízo, para poderem impetrar recursos contra sentenças desfavoráveis. Para se ter uma idéia de seu montante, no âmbito da União o Banco do Brasil tem, atualmente, cerca de R$ 7 bilhões em depósitos judiciais, e a Caixa Econômica Federal, R$ 6,2 bilhões. Já no âmbito estadual, na Nossa Caixa, vinculada ao governo paulista, o saldo desses depósitos é de R$ 8 bilhões.

Como os processos demoram anos para serem julgados em caráter definitivo, por causa do anacronismo de nossa legislação processual, e como os depositários somente têm direito à remuneração da caderneta de poupança, que é muito baixa quando comparada ao retorno médio dos diferentes papéis negociados no mercado de capitais, as instituições financeiras públicas e privadas passaram a obter lucros bilionários com a aplicação do saldo desses depósitos. Conscientes disso, e preocupados em reforçar seu caixa, os diferentes setores e instâncias do Poder Judiciário passaram a escolher bancos que lhes repassam parte desses ganhos.

"Tudo o que implica mais receita para a Justiça em princípio é bem-vindo", afirma o ministro Nelson Jobim, presidente do STF. "Nem tudo deve ser bancado pelo orçamento público", diz o ministro Edson Vidigal, presidente do STJ. "Os convênios são inevitáveis, dado o sufoco financeiro imposto ao Judiciário", complementa o juiz Grijalbo Coutinho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho. "Interessa-nos atuar em todos os setores onde houver demanda por produtos ou serviços financeiros, sem discriminação, desde que amparados por leis em vigor", endossa o Bradesco, em nota à imprensa.

Os valores pagos pelos bancos públicos e privados para administrar os depósitos judiciais dão a dimensão da importância desses acordos firmados com os diferentes setores e instâncias do Judiciário. A Nossa Caixa, por exemplo, que já gastou R$ 70 milhões com a informatização da Justiça estadual, comprometeu-se a gastar R$ 280 milhões, em dois anos, na construção de um novo anexo do Tribunal de Justiça de São Paulo. A CEF negociou com a Justiça Federal o aluguel de 20 prédios, só no Estado de São Paulo. O BB fez o mesmo com a Justiça do Trabalho, em todo o País.

Do ponto de vista formal, essas "parcerias" não infringem nenhuma lei. Mas, do ponto de vista ético, há a circunstância impeditiva desses "parceiros" do Judiciário figurarem como réus em processos judiciais. Ou seja, são parte interessada nas sentenças. Além disso, o saldo dos depósitos judiciais não pertence aos tribunais, mas, sim, àqueles que dependem de seus serviços. Portanto, ao negociar vantagens financeiras com os bancos, a Justiça faz operações com dinheiro que não é seu, podendo assim ficar exposta a eventuais acusações de que não teria interesse em acelerar a tramitação de causas bilionárias só para não prejudicar o interesse de seus "parceiros".

Em sua defesa, a magistratura nega o risco de perder a neutralidade no julgamento das causas de interesse dos bancos, sob a alegação de que suas decisões administrativas não interferem em suas atividades jurisdicionais. Mas, como diziam os romanos, ao definir de modo metafórico a legitimidade do direito, para a mulher de César, não basta ser honesta, mas também tem de parecer honesta. Portanto, por mais sérios que sejam os juízes, não é moralmente admissível a forma que encontraram para contornar suas limitações financeiras. Nada justifica a troca de sua legitimidade por mais recursos. Foi por isso que o moderno Estado de Direito concedeu autonomia ao Judiciário. A idéia era garantir sua independência como prestador de um serviço público essencial. Como mantê-la, se parte de suas despesas ficar a cargo de quem depende de suas sentenças?