Título: O traseiro e os bancos
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/04/2005, Economia, p. B2

O brasileiro, que se orgulha tanto do seu rebolado, teve de ouvir do presidente Lula que "é incapaz de levantar o traseiro e mudar sua conta para um banco mais barato". Brasileiro não gosta nem de fazer contas nem de rodar a baiana quando o assunto são os juros, o preço do dinheiro. Se a prestação cabe no seu salário, fica satisfeito e vai-se endividando. Quando a situação aperta, acha que basta acender uma vela a Santa Edwiges, a padroeira dos endividados. Mas continua financiando a alegria de agiotas e de banqueiros, que lhe tascam os juros do olho da cara.

O último levantamento da Anefac mostra que, na média, o brasileiro pagava em março juros de 218,3% ao ano, no cartão de crédito; de 158,0% ao ano, no cheque especial; de 93,6% ao ano, no empréstimo pessoal nos bancos e de 275,2% se for com financeira; de 102,8% ao ano, nas compras parceladas "sem juros", no comércio; e de 51,6% no crédito direto ao consumidor.

São juros escorchantes a que, no entanto, o brasileiro se submete com conformismo bovino. Depois reclama da Selic, os juros básicos, que estão nos 19,5% ao ano, como se tratasse da causa de todos os males. Não lhe passa pela cabeça que, se a Selic fosse a metade do que é hoje, os juros na ponta do devedor teriam uma redução apenas marginal.

Lula não deixa de ter razão ao criticar a passividade do consumidor brasileiro, "que xinga de noite, mas de dia se conforma com os juros". Mas não poderia deixar de reconhecer que seu governo também tem culpa nesse cartório.

Os bancos estatais, liderados pelo Banco do Brasil e pela Caixa Econômica Federal, têm um pouco mais de 40% do mercado. Têm, portanto, um tremendo poder de fogo. No entanto, cobram dos seus clientes tarifas equivalentes às cobradas pelos demais bancos privados e juros que, muitas vezes, são superiores.

Preferem moleza e concentram seu jogo em operações de tesouraria, por onde ganham dinheiro com títulos do governo, que dispensam análise de risco e administração de garantias. Nenhuma administração de banco estatal trabalha como se tivesse função reguladora no mercado e nem isso lhes é cobrado. Ao contrário, no Brasil, bancos estatais têm longa história de má administração, distribuição clientelista de créditos e favorecimentos de todo tipo. Os manda-chuvas da praça em geral lá têm o que exigem, pagam se quiserem e deixam para resolver "politicamente" eventuais "excessos de zelo" do gerente.

Se o governo quer competição entre bancos para que os juros possam cair, deveria ao menos incentivá-la por meio de uma política ativa sobre os bancos estatais. Quando, finalmente, ele se dispôs a autorizar o crédito consignado (desconto direto em folha de pagamento), foi restabelecida uma certa competição entre bancos. O melhor resultado disso nem foi a expansão do novo segmento, mas a redução dos juros cobrados do cliente, que, apesar da alta da Selic, estavam em 41,1% ao ano em fevereiro de 2004 e passaram a 39,4% ao ano em fevereiro último.

Mas isso é apenas o começo do que poderia ser uma saudável competição na praça. Não há, por exemplo, nenhuma razão especial para que o banco que atende uma empresa detenha contas também de seus funcionários. Vários projetos de lei prevêem que o trabalhador possa escolher o banco onde seu salário seja depositado. Seria providência decisiva para que houvesse mais concorrência e os juros fossem derrubados. Mas todas essas iniciativas permanecem encalhadas nos gabinetes de Brasília.

Tudo se passa como se o governo também não estivesse disposto a mexer seu traseiro para desencadear mudanças desse tipo. É por isso que a crítica do presidente Lula recai sobre ele próprio. Ele faz lá suas cobranças, mas até agora não fez o suficiente para desenvolver um mínimo de concorrência no sistema bancário brasileiro