Título: O efeito Severino
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

O deputado Severino tornou-se a nova Geni da política brasileira. Todos batem nele, num ímpeto incontido, como se os males deste país dele derivassem. O Poder Legislativo muito tem sofrido, pois, a máscara tendo caído, terminou por exibir o modo de negociação que lá impera. Cardeais indignados esquecem de dizer que os "negócios partidários" são anteriores a esta última eleição. Deixemos, por ora, de lado aqueles aspectos que têm sido suficientemente assinalados: a falta de postura do novo presidente, a sua quebra de determinadas praxes, como reuniões e deliberações com o colégio de líderes, a sua irresponsabilidade na aprovação de matérias que oneram o Tesouro Nacional, como a PEC paralela da Previdência, e a sua exibição de projetos de nítido teor corporativo, como a tentativa de aumento do salário dos deputados e o aumento efetivo das verbas de gabinete. Focalizemos a análise em alguns outros pontos, ou nos mesmos, numa outra perspectiva. O aumento das verbas de gabinete foi uma demanda da maior parte dos deputados, tendo sido preparada durante a gestão anterior, a do deputado João Paulo Cunha. A responsabilidade do deputado Severino deveria ser pelo menos compartilhada. No caso, o "alto" clero comungou e comunga os mesmos valores do "baixo". O resto é hipocrisia. Por sua vez, a tentativa de aumento dos salários dos deputados foi uma bandeira, assim como a de aumento das verbas de gabinete, empunhada por todos os outros candidatos à presidência da Câmara, aí incluindo os dois candidatos petistas, com a notável exceção do deputado Aleluia, do PFL. Tampouco esqueçamos que essa iniciativa contou com o apoio do presidente do STF, ministro Nelson Jobim. Onde estavam os representantes do "alto clero"?

É bem verdade que o deputado Severino mostra ausência de pudor em suas negociações e demandas, não guardando as formas que fazem parte do ritual legislativo. Quando as formas não são mais guardadas, exemplos não se produzem e, na ausência deles, a imagem de um Poder republicano se debilita. No entanto, a sua "honestidade", o seu dizer como as coisas acontecem, pode ser a ocasião de uma mudança profunda dos modos de se fazer política, das relações fisiológicas (e outras) entre o Poder Executivo e o Legislativo. Surge a possibilidade de que não apenas as "aparências" sejam preservadas, mas a de uma transformação da política em bases morais, voltadas para o bem coletivo.

Um ganho maior das desavenças de Severino e de seus aliados com o PT e o governo tem sido o restabelecimento de uma certa independência do Poder Legislativo, deixando de ser uma mera correia de transmissão dos projetos e demandas do Executivo. A sua reação contra o excesso de MPs, se esta vier a se consubstanciar numa limitação dessas medidas provisórias, inclui-se no rol das decisões saneadoras. Ressalte-se que durante dois anos o PT segurou, em debates intermináveis entre suas próprias tendências, a Lei de Biossegurança. Na melhor prática assembleísta, uma reunião se sucedia a outra reunião, sem nenhuma decisão definitiva. Quem pôs em votação o projeto, até mesmo contra a sua própria convicção no que diz respeito às pesquisas com células-tronco, foi um "atrasado" deputado Severino. Por que os "avançados" que detinham o poder não decidiram antes?

A base governista, sobretudo o PT, mostrou nestes dois anos uma avidez sem limites por poder e cargos. Tudo para o partido do presidente, migalhas para os demais, esse parecia ser o lema que conduzia os trabalhos executivos e legislativos. O PT mantinha a sua tendência hegemônica de tentar reinar sobre os outros partidos, apesar dos insistentes pedidos do presidente para que essa prática fosse modificada. As negociações faziam-se sempre a partir dessa perspectiva hegemônica. Com a vitória de Severino há um nítido ganho: o Executivo e o PT serão obrigados a negociar, abandonando a tendência de tudo impor. Enquanto o deputado João Paulo Cunha esteve na presidência da Câmara, a vontade do Executivo se impunha facilmente e o partido dominante usufruía os frutos do poder.

A derrota do governo na MP 232 é resultado do efeito Severino. Ele soube encarnar uma demanda da sociedade, obrigando o governo a recuar. O recuo é significativo, pois o Brasil está dizendo publicamente não ao aumento de impostos. O presidente Lula faltou com a palavra, empenhada junto às centrais sindicais, de corrigir simplesmente a tabela do Imposto de Renda. O governo não está "perdendo" nada, mas tão-somente deixando de pôr a mão num dinheiro que não lhe pertence. A Câmara de Deputados, num exercício de independência e de atendimento a uma demanda popular, pôs-se à altura da situação.

O governo perdeu a presidência da Câmara por seus próprios erros, muito mais do que pelos acertos das oposições. Vítima de suas contradições internas, ficou refém de si mesmo. Nesse contexto, ocorreu uma espécie de revolta de deputados, que verbalizaram também o desprestígio da Câmara, que vinha apenas referendando decisões do Executivo. Os deputados reagiram a como vinham sendo tratados, sejam do "alto" ou do "baixo" clero. O efeito Severino foi aqui um resgate da autonomia e dignidade do Poder Legislativo, embora este não tenha feito valer desde então essa espécie de independência recuperada. A Câmara dos Deputados está deixando passar uma oportunidade de ouro para transformar a "independência" recobrada em "dignidade" da função.

Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br