Título: A praga do nepotismo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2005, Notas & Informações, p. A3

C om a eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, a degradação política e institucional do Legislativo brasileiro está chegando a níveis jamais atingidos, desde a redemocratização do País, nos anos 80. Não bastasse a linguagem vulgar que vem utilizando em suas manifestações públicas e as ameaças de retaliação que vem fazendo ao presidente Lula, por não estar sendo atendido em seus pedidos de favores e benesses, Severino não hesitou em convocar uma rede nacional de rádio e televisão para defender a si e aos seus. Nunca, antes, o nepotismo foi justificado de forma tão acintosa.

O que o levou a esse gesto disparatado foi uma iniciativa moralizadora de um grupo de procuradores da República lotados em Brasília, que há dias encaminhou uma representação no Tribunal de Contas da União (TCU), solicitando a imediata exoneração dos familiares de deputados contratados para cargos comissionados. No entanto, agindo como se estivesse na cidade pernambucana de João Alfredo, onde se orgulha publicamente de descumprir a lei para favorecer eleitores, o presidente da Câmara afirmou que não porá seus parentes na rua, sob o argumento de que eles têm títulos universitários, e passou a defender as contratações com veemência, como se elas fossem direito adquirido da classe política.

O mais grave é que essa mentalidade do "aos amigos tudo, aos inimigos a lei" não se circunscreve apenas às regiões mais atrasadas do País, onde a pobreza e a estagnação são caldo de cultura para o fisiologismo e para outras práticas imorais. Pelo contrário, ela se enraizou de tal forma em nossas instituições governamentais, que hoje está entranhada até mesmo nos próprios órgãos que têm o dever constitucional de zelar pela moralidade no poder público.

É esse o caso do TCU. Em vez de canalizar a indignação da sociedade com relação ao nepotismo na Câmara, acolhendo de imediato o pedido de exoneração dos parentes de deputados contratados sem concurso, o relator do processo, ministro Lincoln Magalhães da Rocha, produziu uma verdadeira pérola do besteirol político nacional. Segundo ele, por "discriminar a família legalmente constituída", a solicitação dos procuradores da República não poderia ser acolhida. "A família é o grande pilar da sociedade", afirmou, sem explicar por que para fortalecer esse pilar é preciso cimentá-lo com emprego público. Assustado com a repercussão causada por essas declarações estapafúrdias, o presidente da corte, ministro Adylson Motta, forçou Magalhães a renunciar à relatoria. Mas o estrago na imagem da corte já está feito.

Por ironia, as declarações de Magalhães foram publicadas no mesmo dia em que a imprensa noticiou dois fatos exemplares. Um foi a divulgação, pela Organização das Nações Unidas (ONU), de um levantamento no qual denuncia a prática do nepotismo no Poder Judiciário brasileiro. O outro foi a comprovação dessa denúncia no Tribunal de Justiça de Sergipe, que bateu o nada honroso recorde de aprovação de parentes de juízes e desembargadores, em seu último concurso para contratação de serventuários. Muitos dos aprovados foram informados previamente das questões. Outros receberam as respostas por celular. O nepotismo foi tão escandaloso que, por pressão da OAB, o concurso foi anulado.

Medidas moralizadoras como essa são importantes, mas não eliminam em caráter definitivo o nepotismo nas instituições. A única forma de enfrentá-lo para valer é pressionar o Legislativo a aprovar regras precisas para contratação de profissionais competentes para cargos de confiança, em todos os setores e instâncias de nossas instituições governamentais. Nos últimos cinco anos, vários projetos com esse objetivo foram aprovados pelas comissões técnicas do Senado. Mas, por pressão do baixo clero, todos foram engavetados. Ao todo, são 11 projetos nas gavetas do Congresso.

Para não deteriorar ainda mais a sua imagem, o Legislativo tem de desengavetá-los o quanto antes. Quanto mais tempo perder nessa empreitada, deixando de valorizar a meritocracia para dar prioridade aos laços de parentesco, mais dirigentes, magistrados e parlamentares egressos da mesma fôrma de um Severino Cavalcanti estarão abalando a confiança da sociedade no regime democrático tão arduamente conquistado.