Título: Novos caminhos para a caatinga
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Estudo divulgado há poucos dias pelo Unicef, o órgão das Nações Unidas voltado para os problemas das crianças no mundo, desperta novas preocupações em relação ao semi-árido brasileiro. Porque em 95% dos 1.444 municípios analisados a taxa de mortalidade infantil é mais alta que a média nacional e a desnutrição em um terço das cidades atinge 10% das crianças de até 2 anos de idade. O relatório vem num momento em que o Nordeste e toda a bacia do São Francisco estão mergulhados em intensa polêmica sobre o projeto de transposição das águas desse rio, já comentado neste espaço. Um projeto que, na verdade, atenderá basicamente (pelo menos 70% da água a ser transposta) a programas de irrigação de culturas voltadas para a exportação e à carcinicultura - e não às "vítimas da seca", como tem sido propalado. Estas, que vivem em pequenas comunidades isoladas, não seriam atendidas pela transposição; para elas seriam necessários microprojetos, como as cisternas de placas, que (onde estão sendo implantadas) lhes permitem acumular água gratuitamente durante a temporada de chuvas, para usar na estiagem. Além disso, a água transposta poderá custar até cinco vezes mais que as tarifas atuais nas cidades da região.

Mais uma vez o semi-árido nordestino se vê às voltas com propostas que não são as que mais lhe convêm - como acontece há séculos (grandes açudes em propriedades privadas, com altíssima taxa de evaporação da água, por exemplo). O recém-falecido ex-ministro Celso Furtado, num de seus livros de memórias, lembra que, na origem, o plano de criação da Sudene era voltado fundamentalmente para um estudo aprofundado da questão hídrica e para soluções adequadas a partir daí. Porque - salientava ele - desde a ocupação das faixas litorâneas, de terras mais férteis e recursos hídricos mais abundantes, as população nordestinas foram deslocadas para regiões mais áridas (ele chega a dizer que "sertão" era uma corruptela de "desertão"). Ali, na falta de terras adequadas a culturas de alimentos, tiveram de dedicar-se à pecuária, inclusive para fornecer couros e carnes para a faixa litorânea. A postura correta seria a adequação e a convivência com as condições naturais.

Hoje, dizem os Cenários para o Bioma Caatinga, publicados em 2004 pelo Conselho da Reserva da Biosfera da Caatinga (1.280 municípios, do Maranhão a Minas Gerais, 12,14% do território nacional, 1,03 milhão de km2, 28,09 milhões de habitantes) em parceria com a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco, a degradação ambiental do bioma é muito preocupante, quando nada porque boa parte de sua diversidade biológica é endêmica, só ocorre ali. Paraíba e Ceará são os Estados com maior nível de degradação, em mais de 50% da área. Depois, Rio Grande do Norte e Pernambuco, com mais de 30%. Mesmo em Estados em melhor situação sob esse aspecto, como Bahia e Piauí, o rápido avanço das monoculturas - principalmente da soja - preocupa muito. A previsão é de que, por essa e outras causas (uso como lenha ou carvão em domicílios ou atividades industriais, avanço da pecuária, irrigação intensa com degradação do solo) se chegue a 2010 com a cobertura vegetal reduzida a pouco mais de 30% do total no bioma.

Não bastasse, pelo menos 180 mil km2 da caatinga já estão praticamente desertificados e em mais 376 mil km2 o risco é alto. E pouco se tem conseguido avançar na geração de renda no bioma. Apenas em três capitais - Natal, Teresina e Fortaleza - a renda média per capita está acima de um salário mínimo. A taxa de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos de idade é muito alta na maior parte dos municípios. A esperança de vida ao nascer, entre 50 e 60 anos, está bem abaixo da média brasileira.

Um dos caminhos sugeridos pelo documento aponta a necessidade de forte investimento na ciência, para que ela aprofunde seu conhecimento da rica biodiversidade do semi-árido e nela encontre novas utilizações, nas áreas de medicamentos, alimentos, novos materiais. Mais de mil espécies de plantas são conhecidas, muitas delas com larga utilização na medicina popular. Mas, para que isso seja possível, será preciso investir antes em 82 áreas prioritárias para a conservação dessa biodiversidade - 27 delas são consideradas "de extrema importância biológica". E, juntas, as áreas prioritárias somam 59,7% do território do bioma.

Também será preciso investir na implantação e no manejo competente das áreas de conservação, que pouco passam de 3% do território da caatinga (quando a meta nacional é conservar pelo menos 10% de cada bioma e quando a média mundial já é de 6%). Será preciso dispensar especial atenção a áreas muito ricas, como a de Aiuaba, no Ceará, Vale do Araripe, na divisa deste Estado com Pernambuco, a região do Pajeú, no agreste pernambucano, dunas do São Francisco e Raso da Catarina, na Bahia - entre muitas outras.

Se não estivermos atentos a tudo isso, correrá risco também a extraordinária diversidade cultural do semi-árido, que o País aprendeu a admirar na literatura, na música, na culinária, no artesanato, em muitas áreas. Uma diversidade que vai das cirandeiras a Antônio Nóbrega e Zé Ramalho. De Alceu Valença aos cantadores e repentistas que o jurista José Paulo Cavalcanti Filho conhece e estuda como poucos. De Ariano Suassuna e Câmara Cascudo à literatura de cordel. Das esculturas do pernambucano Francisco Brennand à arte do piauiense Mestre Pastinha em madeira - para só citar uns poucos nomes. Mas uma diversidade - e uma qualidade - cultural que está indissoluvelmente ligada às formas e aos modos de ser da caatinga, tão ameaçados.

O Brasil precisa criar juízo. E cuidar bem da caatinga. Sem megaprojetos que pouco ou nada resolverão.