Título: O meu, não!
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

"A praga do Brasil é ter juristas demais!",

praguejava meu pai.

"Mas o que você

tem contra os advogados?"

"Que advogados?

Eu estou falando do pessoal

que vive de juros!"

O Lula, pelo visto, também não gosta de "juristas". No início da semana ele conclamou o povo a combatê-los "tirando o traseiro da cadeira"...

Mas isso é outro problema. Falemos, por enquanto, do meu falecido pai. Ele já reclamava dos juros num tempo em que eles não eram nem sombra do que são hoje.

Naquela época, pagar juros era uma opção voluntária. E as taxas reais (descontada a inflação) eram infinitamente mais baixas. Ele costumava comprar eletrodomésticos na G. Aronson. O preço de um televisor, por exemplo, era de mil cruzeiros à vista, ou dez prestações de 120 cruzeiros. Total a prazo, 1.200 cruzeiros. Ele calculava os juros e, tendo dinheiro, preferia pagar à vista.

Hoje ele não poderia mais optar. As lojas vendem o televisor por R$ 1.000 (ou melhor, 999...) à vista, ou então por - surpresa! - dez prestações de R$ 100. Total a prazo: os mesmos R$ 1.000 do preço à vista. Não existem mais juros? Ao contrário, eles não só existem como agora se tornaram obrigatórios. Segundo os especialistas do setor financeiro, a taxa média de juros das vendas a prazo "sem juros" é de 6% ao mês. Pego a minha calculadora financeira HP-12C (curiosamente, ainda é a melhor há mais de 20 anos) e faço as contas. O preço à vista desse televisor, descontados os juros, deveria ser de R$ 780. Ofereça essa quantia ao vendedor da loja. Ele não se comoverá. Insistirá que o preço à vista é mesmo de R$ 1.000 e que, ao vender em dez prestações, ele não está cobrando juros, está apenas "facilitando" o pagamento...

Na prática, isso significa que você não tem mais opções. Se comprar a prazo, paga os juros; se comprar à vista, paga do mesmo jeito. O que ocorre é que os comerciantes, já há algum tempo, descobriram que as suas margens de lucro podem ser muito maiores se agirem como banqueiros do que se se restringirem apenas à compra e venda de produtos. As grandes lojas, hoje em dia, não são mais lojas. São, isso sim, instituições de crédito com prateleiras.Os juros, agora, são compulsórios! IPTU, IPVA, Imposto de Renda, todos os impostos que você paga como pessoa física já vêm devidamente parcelados. O governo dá um "desconto" insignificante para pagamento à vista, justamente para obrigá-lo a recolher os seus débitos com juros.

Bom, e aí vem o presidente Lula e diz que nós todos somos comodistas, que é por causa do nosso conformismo que os juros são escorchantes, e vai por aí afora. Meu pai, vivo fosse, teria ímpetos de esganá-lo.

De que adianta mudar de banco, se as taxas de juros são praticamente as mesmas em todos eles? De que nos vale pesquisar preços, se as "ofertas imperdíveis" são iguais em todas as lojas? Além do mais, quantas pessoas sabem decifrar a equação básica dos juros, que é "FV = PV(1+i) elevado a N"? Mesmo que isso fosse ensinado na escola fundamental, quantas pessoas possuem uma calculadora 12C para aplicar a fórmula nas contas de seu dia-a-dia? Não tente fazê-lo à mão. Até mesmo a máquina demanda alguns segundos para processar essas informações.

Lula até que tem razão quando se queixa dos altos juros praticados na nossa economia. O que o Palocci não disse a ele é que, se os juros de mercado são altos, os principais motivos, entre outros, são:

A taxa básica de juros, fixada pelo governo, que é a maior do mundo.

A dívida pública, que, para ser rolada, retira do mercado oito décimos de todo o dinheiro que deveria estar disponível para crédito.

Os impostos e contribuições que o governo recolhe a cada operação financeira e que representam mais de 40% da taxa de juros cobrada dos tomadores de empréstimos.

O "spread", ou seja, a taxa de risco, que é alta principalmente porque a nossa legislação é por demais indulgente com relação aos devedores inadimplentes.

Afinal, de quem é a culpa pela "jurificação" de quase toda a nossa economia? É dos juros altos. Quem é que faz os juros serem altos? É a política econômica. Quem é que formula a política econômica? É o governo. Quem é que dirige o governo? Bingo! É o próprio Lula.

Sorte dele que nós, brasileiros, sejamos todos comodistas. Não o fôssemos, por muito menos ele já teria sido "linchado".

Com todo o respeito, presidente, o meu traseiro eu não tiro da cadeira, de jeito nenhum. Mantendo-me sentado, ao menos ele fica protegido. Não é por nada, não. É que a gente nunca sabe onde vai ser a próxima investida do seu governo.