Título: Meandros da 'consciência tranqüila¿
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Certa feita, na presidência da CPI "dos anões", na oitiva de um parlamentar que estava sendo investigado, ouvi-lhe que fora cassado pela ditadura e não temia ser vítima de novo, pois tinha a consciência tranqüila Conhecia-lhe o passado o suficiente para dizer-lhe que consciência tranqüila, por vezes, é falta de memória, uma vez que as cassações tanto foram por critério político como por corrupção. Com efeito, seu passado não lhe garantia tranqüilidade, a menos que a memória lhe fosse convenientemente benevolente e seletiva, dela apagando o que o comprometera no trato do bem público. Ao cabo, o relatório do deputado Roberto Magalhães, aprovado unanimemente, confirmou que o depoente sofria de falta de memória. Há, é evidente, os que podem ter tranqüilidade quanto de sua vida pública ou privada, sem máculas. Shakespeare, pela boca de Hamlet, advertiu Ofélia: "Sejas tu fria como o gelo e pura como a neve e ainda assim não escaparás à calúnia." Pompéia, mulher de César, suspeita injustamente de adultério, o imperador, pelo sim, pelo não, rejeitou-a, sob o argumento de que à mulher de César não bastava ser honesta, mas também parecer honesta. Isso nos sirva para conter o julgamento precipitado. Nele não quero incorrer, mesmo que as aparências sejam fortes, conquanto não passem de aparências.

O que se passa com o senador Romero Jucá, hoje ministro da Previdência Social, pode ser fruto da inveja ou da maldade, mas são versões contundentes sobre possíveis atos que lhe imputam desrespeito ao menos a um dos dez mandamentos que, no Monte Sinai, Deus confiou a Moisés, segundo o Antigo Testamento. Político talentoso, no-lo provam as várias funções públicas a que tem sido chamado a ocupar. Multifário, de seu gênio se serviu Fernando Henrique Cardoso, na liderança de seu governo, como agora Lula em seu Ministério multicor. Não seria surpresa se não causasse despeito no terreno por vezes pantanoso da política. Talvez daí decorra o número de processos de que é objeto no STJ, que tramitam em segredo de Justiça, e, agora, a inimaginável acusação de haver, como empresário, obtido empréstimo no Banco da Amazônia (Basa), dando em garantia sete fazendas inexistentes. Dessa acusação - que espero leviana - deu conhecimento ao presidente Lula e, se este o nomeou, será porque considerou convincentes suas explicações. A imprensa, todavia, não as terá achado. Volta a levantar dúvidas sobre a transação com o banco, que teria inicialmente recusado as fazendas como garantia. Mas cedera, segundo um gerente do Basa, por "ordem superior". Entrementes, o banco, em nota oficial, informa que "a dívida (de R$ 18 milhões) está sendo executada judicialmente" e que "a inexistência das sete fazendas dadas como parte das garantias está sendo investigada".

Creio ter lido que o ministro Jucá nega ter indicado as sete fazendas inexistentes no Amazonas como garantias do empréstimo. A iniciativa havia sido de um sócio seu. Sempre há um sócio infiel em histórias iguais. No caso, traindo um senador da República que foi líder do governo tucano e agora recebe do governo petista a missão ingente de eliminar os rombos da Previdência Social. Console o ministro o sermão do Segundo Domingo do Advento, do padre Vieira: "Antes quisera ver-me acusado de demônio do que julgado de homens. No juízo de Deus, as nossas boas obras defendem-nos, no juízo dos homens o maior inimigo que temos são as nossas obras. Não há maior delito no mundo do que ser o melhor." O empenho que governos diversos têm em contar com o senador sugerem que é o melhor. São as obras dele que estão sendo acusadas, no Banco da Amazônia e, agora, objeto de investigação pela Polícia Federal por suspeita de recebimento de propina.

Os repórteres, que o príncipe Charles chama de súcia que inferniza o seu amor outonal, não seriam diferentes nesta latitude. Mas o ministro conta com um antídoto: pediu ao procurador-geral da República que lhe investigue a vida honrada. Foi atendido: o procurador Cláudio Fonteles concedeu-lhe 20 dias para apresentar sua defesa. Não precisará de tanto tempo, de certo.

No breve governo Itamar Franco, a mídia levantou suspeitas de procedimento incompatível do ministro Hargreaves, chefe da Casa Civil. Itamar aceitou o pedido de Hargreaves e o dispensou até que tudo estivesse esclarecido. Comprovada a sua inocência, foi reconduzido ao ministério. No caso do ministro Jucá, ele retrucou aos repórteres que deseja "esclarecer todas as denúncias" que pesam contra ele. Basta isso - assim confio - para mantê-lo prestigiado no governo e dedicado à sua hercúlea tarefa no saneamento da corrupção existente no INSS.

A menos que assim não venha a concluir a Procuradoria-Geral da República. Ao revés, haverá de livrar o ministro de suspeitas, provando que Vieira se enganou ao não confiar na justiça dos homens. E o ministro poderá dedicar-se, em tempo integral, a pôr em execução as decisivas e oportunas propostas com que acabará com os rombos do INSS.

Jarbas Passarinho,

ex-presidente da Fundação

Milton Campos, foi

senador pelo Estado do Pará

e ministro de Estado